
Ah, sim, tem yoga ali no meio
Eu fico encafifado quando pessoas dizem que "yoga é união". Geralmente isso é dito em resposta a perguntas simples, como "o que é yoga?" -- oras, "yoga é união", ponto -- ou para justificar a inclusão de práticas estranhas à tradição do yoga, como o budismo, terapias alternativas ou coisas definitivamente exóticas.
Eu não sou um purista. O pouco que pude estudar até agora me diz que aquilo que chamamos hoje de tradição do yoga não é tão tradicional que não permita agregar práticas exóticas ao yoga. Há, por exemplo, fortes indícios de que o que se pratica hoje foi influenciado por uma prática indiana chamada Mallakhamb e pela ginástica militar indiana do séc. XIX. E, se retornarmos a Patañjali, é fácil perceber que o que se pratica hoje quase nada tem a ver com o que o sábio pretendeu transmitir em seu sutra. Até aí, nenhum problema sério, já que as práticas são benéficas para a maioria das pessoas.
O problema é chamar as coisas pelos nomes errados. Se você chamar o João de Pedro ou de brócolis, ele não vai gostar. Acho importante ter precisão no uso das palavras e analisar com serenidade o que a palavra "yoga" realmente pode significar e o que é a "união" que tantas pessoas associam ao yoga.
O Wiktionary traz nada menos do que 38 significados diferentes para a palavra yoga. O primeiro significado traz os seguintes verbos: submeter, juntar, conectar, atar, fazendo referência ao ato de arrear cavalos e mantê-los juntos para, por exemplo, puxar uma carroça. O oitavo relaciona yoga a método, meio ou técnica. O décimo nono significado fala de juntar e adequar. Mas são os itens 21 a 28 que mais interessam, porquanto são os itens específicos da cultura yogi.
21. aplicação ou concentração dos pensamentos, contemplação abstrata, meditação, auto-concentração, meditação abstrata e abstração mental praticada como um sistemaÉ claro que um verbete não pode ser tomado isoladamente. Os diversos significados da palavra "yoga" se assemelham, mas não são idênticos. Entre a meditação abstrata e a busca religiosa de Deus há diversas diferenças e a lista de significados não constitui uma seqüência metódica.
22. qualquer ato ou ritual que conduza ao yoga ou à meditação abstrata
23. yoga personificada (como o filho de Dharma e Kriya)
24. um seguidor do sistema yogi
25. (no samkhya) a união da alma com a matéria
26. a união da alma individual com a alma universal
27. devoção e piedade na busca de Deus
28. contato ou união com o mundo exterior
O item 26 é o que mais se aproxima do significado corrente da palavra yoga; boa parte das pessoas que dizem que "yoga é união" refere-se justamente à união da alma individual com a alma universal. Aqui começam alguns problemas.
Quase todas as religiões propõem-se a colocar o indivíduo diante de Deus. As religiões semíticas são assim -- judaísmo, cristianismo e islamismo. As religiões orientais propõem o mesmo, ainda que de uma forma mais sutil, sem a personificação de Deus. De forma muito breve, conforme a tradição hindu (e yogi), essa união implica dois estágios: o encontro com o Atman (sua natureza original) e o encontro do Atman com Brahman. Esse processo exige que o indivíduo perca ou, melhor, livre-se de sua identificação com aquilo que usualmente ele chama de seu -- corpo, mente, crenças etc. -- e perceba que a única identificação necessária é com o Atman.
É importante ressaltar que as palavras, aqui, não dão conta da explicação que pretendo oferecer: identificar-se com o Atman não corresponde à realidade do processo de libertação, porque não há 'alguém' que se identifique com o Atman, mas simplesmente uma percepção profunda (isto é, sem a consolidação de um sujeito que realiza essa ação) de que o Atman é a única forma adequada de individuação e, a rigor, nem é correto usar 'Atman' e 'individuação' na mesma frase.
Não há nesse processo uma união necessária, mas um abandono daquilo que você julga ser você, para que a ligação entre Atman e Brahman possa ser experimentada (outro termo impreciso, mas prossigamos). Reconheça, por exemplo, que suas crenças, seus desejos e suas ações não têm qualquer influência nesse processo; por outro lado, há algo em você que pode facilitar ou dificultar a percepção do 'seu' Atman e a união de Atman com Brahman.
Se todo o discurso sobre união for de fato sobre o mundo material, o mais correto seria falar em "desunião", porque yoga não é isto e não é aquilo -- neti neti --, não é budismo, não é aromaterapia, não é música new age, não é astrologia, não é mallakhamb. Surpreendentemente o yoga também não é asana, pranayama, kriya, mudra ou dhyana. Não se trata de unir -- o que nos leva a acumular coisas, hábitos, conceitos, idéias, desejos, pretensões etc. --, mas de despojar-se, de, como diz meu professor, retirar as camadas da cebola para descobrir que, afinal, não há nada para ser descoberto -- nirvikalpa.
Neste sentido, portanto, afirmar que "yoga é união" cria mais um vritti, uma dispersão mental, uma confusão sobre o real significado da palavra yoga -- trata-se da mera manifestação do desejo de adicionar coisas ao yoga sem o trabalho de avaliar compatibilidades, objetivos e resultados.
***
Diz a lenda que um dia uma moça foi até a escola de um famoso professor de yoga e começou a lhe fazer perguntas sobre suas aulas:
-- Olá, boa tarde.
-- Olá, boa tarde, seja bem-vinda.
-- Queria algumas informações sobre suas aulas de yoga.
-- Claro, o que você gostaria de saber?
-- Aqui vocês têm massagem?
-- Hm... não
-- Vocês usam cromoterapia nas aulas? Aromaterapia?
-- Não.
-- E reiki?
-- Também não.
-- Viagem astral?
-- Realmente, não.
-- Astrologia? Runas? Cristais?
-- Não. Olha acho que você...
-- Puxa, que bom, então acho que vim ao lugar certo.
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