
Perguntam-me com freqüência sobre os benefícios do yoga. Ora, o principal benefício do yoga é a realização do estado de yoga. Uma das principais causas de confusões na compreensão do que é o yoga está no fato de que o yoga é um sistema e também o estado que se atinge através do estudo e da prática desse sistema. Então, com efeito, algumas pessoas pensam que todo praticante de yoga é um yogi ou que a realização prática do sistema leva automática e inevitavelmente à realização do estado de yoga, onde tudo é felicidade e bem-aventurança.
Não é bem assim. Antes de chegar ao estado de yoga há muito estudo, prática, suor e lágrimas. E mesmo que uma pessoa dedique uma vida inteira ao yoga, é bem possível que ela não se torne algo além de um bom praticante de yoga -- e quanto maiores as pretensões de ser algo além de um praticante bom e sincero, maiores as chances da pessoa realmente não ultrapassar essa condição.
Mas para nós mortais há o consolo dos benefícios mundanos do yoga. Ainda que não obtenhamos a libertação (moksha) e não nos desliguemos das influências do mundo, somos capazes de colher benefícios palpáveis. O yoga modifica o corpo, acalma a mente, desperta o espírito. Em muitos casos é possível experimentar os dois primeiros efeitos desde as primeiras aulas (a experiência espiritual é algo bem mais sutil).
Vamos por partes, exatamente como fez Patañjali, o primeiro sistematizador do yoga. O sábio indiano do início da era Cristã dividiu o yoga em oito angas (partes): yama, niyama, asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi. Os cinco primeiros angas são as práticas externas; os três últimos angas são as práticas internas.
Yama e Niyama
Yama e Niyama são os princípios éticos e morais do yoga. Não vou me estender em explicações pormenorizadas sobre cada um deles -- classicamente são cinco yamas e cinco niyamas. Basta dizer que refletir sobre eles pode realmente modificar aquilo que se faz dentro e fora do yoga. Ahimsa, um dos yama, é tradicionalmente entendido como “não causar danos”; logo, o indivíduo que realmente entende ahimsa busca observar-se atentamente quando, por exemplo, é tomado de raiva ou passa por uma situação especialmente tensa. Santosha, o niyama que costuma ser traduzido como contentamento, pode levar o indivíduo a aceitar melhor os resultados de suas ações, mesmo quando eles pareçam injustamente desproporcionais ao esforço colocado nelas.
Yamas e niyamas não têm como objetivo desenvolver resignação ou ataraxia, mas consciência. O estudo sincero desses princípios éticos e morais leva o indivíduo a trazer cada um desses princípios para dentro de sua vida e, portanto, para fora das páginas onde eles são explicados.
Asana
Os asanas são a parte mais conhecida do yoga. A prática de asana traz diversos benefícios, alguns bem evidentes, outros mais sutis. Os mais evidentes são os benefícios musculares e articulares. Algumas posturas realmente aumentam a força e a flexibilidade; pode-se também perder peso com o yoga. A consciência corporal desenvolve-se bastante, o que traz vários outros benefícios indiretos, como melhor desempenho físico na realização de tarefas diversas, maior controle sobre os movimentos, melhor equilíbrio, melhor aproveitamento da força física etc.
Entre os benefícios mais sutis há também a melhoria da postura, da digestão, da respiração, melhor funcionamento de glândulas e de órgãos internos -- digo sutis não porque são realmente sutis, mas porque não se revelam tão facilmente quanto os benefícios musculares e articulares e em muitos casos só são sentidos quando a prática física é continuada por um tempo significativo.
Pranayama
Pranayama consiste em desenvolver o controle da energia que circula pelo corpo. Na maioria dos casos, esse controle se dá através da prática de exercícios respiratórios porque a forma mais simples e eficiente de obter energia é através da respiração -- i.e., da absorção de energia vital contida no ar.
É claro que num primeiro momento as práticas de controle da respiração ampliam a capacidade que se tem de controlar a respiração. Controlar a respiração é o primeiro passo para controlar a mente e os sentidos -- para ser mais específico, é o primeiro passo para acalmar a mente e os sentidos. Quando a mente está calma é possível perceber melhor a realidade; em outras palavras, a mente realmente calma não fica gritando e pedindo atenção, ela simplesmente permite que a realidade se manifeste e que a vejamos com mais clareza. E para quê serve uma visão clara sobre a realidade? Se você já tentou procurar qualquer coisa no escuro sabe como é importante ver as coisas com clareza.
Fisiologicamente falando, a prática de pranayama provavelmente ampliará sua capacidade respiratória, o que certamente trará benefícios à sua saúde. Você terá mais fôlego e isto ampliará também os benefícios decorrentes da prática dos asana.
Pratyahara
Começamos aqui a entrar num território pouco conhecido. A tradução mais comum para pratyahara é “contenção dos sentidos”. Pratyahara é o primeiro passo para a meditação, embora ainda seja considerado uma prática externa, estritamente ligada ao mundo material. Se pranayama prepara o terreno para o controle da mente e dos sentidos, pratyahara é o estágio a partir do qual o praticante realmente se coloca diante deles, buscando afastá-los cada vez mais das influências do mundo externo.
Uma história -- cuja veracidade não pude atestar -- pode explicar algo sobre pratyahara, sobre seus benefícios mais evidentes e, de quebra, sobre a combinação dos benefícios dos itens anteriores.
Diz a história que Capablanca, o lendário campeão de xadrez cubano do início do século XX, participava de um torneio quando uma fanfarra passou pela rua, à frente do local onde o enxadrista jogava. O barulho foi ensurdecedor e incomodou quase todos no local onde estava sendo realizado o torneio. Algum tempo depois, terminado o jogo, um dos organizadores foi até Capablanca para se desculpar pela fanfarra, perguntando se o barulho o havia incomodado muito. Capablanca surpreendeu-se com a pergunta e respondeu apenas: "Que fanfarra?".
Não estamos falando de um yogi, mas de um campeão de xadrez. Apesar disso, naturalmente, sua concentração não teria sido possível sem
1) a firme disposição de seguir adiante e dedicar-se ao torneio (o que em grande parte corresponde aos yama e ao niyama, os princípios éticos e às observâncias do yoga;
2) uma postura confortável e estável, que, embora não fosse uma postura de lótus, certamente deixou o campeão à vontade para jogar xadrez;
3) respiração fluida, tranqüila e harmoniosa.
Não consta que Capablanca conhecesse o yoga; provavelmente não. Mas de algum modo ele realizou algo muito parecido com as práticas externas do yoga e, naturalmente, colheu seus benefícios. A concentração decorrente da boa postura, da respiração correta e da disposição pessoal (ética, moral) para um determinado fim é uma das coisas que diferenciam o bom profissional do mau profissional, o bom estudante do mau estudante, o bom atleta do mau atleta etc. As aplicações de pratyahara são inúmeras, assim como seus benefícios.
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Não pretendo falar dos outros anga. Dharana, dhyana e samadhi, que compõem o conjunto de práticas internas do yoga, exigem explicações muito mais extensas e difíceis -- para mim. Por enquanto, basta concluir este texto dizendo o seguinte.
A despeito de todos esses benefícios, devo repetir aqui algo que foi dito no início: o verdadeiro benefício do yoga é o próprio estado de yoga -- moksha, a libertação, a percepção do Eu. Quando isso é conquistado percebe-se que os benefícios particulares das práticas externas -- aquelas que influenciam diretamente a saúde do corpo e da mente -- não são importantes.
Obviamente é bom ter boa saúde, ter força e flexibilidade, saber se concentrar, desenvolver a paciência e a calma, mas nada disso importa se a pessoa confunde o dedo com a lua: aferroar-se a cada um desses benefícios é a causa de todos os sofrimentos, como quando conquistamos um bem (um carro, um imóvel, uma carreira) e a partir daí desdobramo-nos para mantê-lo a todo custo. Calma, saúde e força são ferramentas. As práticas externas (físicas) do yoga e seus benefícios só são úteis quando o indivíduo sabe o que deve, precisa e quer fazer -- em outras palavras, quando ele sabe exatamente quem ele é.
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Artigo publicado no site Luz & Terra. Link da imagem.
Comentários
Realmente desconheço a fonte. A história me foi passada anos atrás, por meu professor de xadrez. Numa googlada rápida, encontrei menções apenas ao contrário: Capablanca viu-se incomodado algumas vezes pelos ruídos de determinados locais dos torneios. Talvez depois tenha desenvolvido condições de lidar com isso. Se souber de algo, me avise.
Abraço e obrigado por vir ao blog.