Se você inclui asanas em sua prática e em seu estudo regular de yoga, então o que você pratica e estuda em grande medida é Hatha Yoga. Praticamente todos os «estilos» de yoga conhecidos atualmente no Brasil inspiraram-se no Hatha Yoga ou derivam dele: Iyengar Yoga, Sivananda Yoga, Ashtanga Vinyasa Yoga (mais conhecido como Ashtanga Yoga), Vinyasa Flow Yoga, Power Yoga, Swasthya Yoga, Yoga Integral, Yoga Clássico, Sattva Yoga, Anusara Yoga e também o que algumas pessoas chamam de «Hatha Yoga Contemporâneo». Também vem do Hatha Yoga a «aula de yoga» disponível em academias ou espaços não-especializados. Repetindo, para que não haja dúvidas: se tem asanas, o que você pratica veio do Hatha Yoga.
O Hatha Yoga foi criado por Gorakhshanath, provavelmente na Idade Média. Gorakhshanath (também conhecido como Gorakhnath) também foi o fundador da Natha Sampradaya, a linhagem tântrica-shivaísta de mestres como Matsyendranath (o mesmo do matsyendrasana), Svatmarama e Gheranda.
O Hatha Yoga tem sido erroneamente chamado de «yoga do corpo» em razão de incluir a prática de muitas técnicas corporais. No entanto, erraríamos menos se disséssemos que o Hatha Yoga é «o yoga da manipulação da energia vital», o que, é claro, amplia imensamente o espectro de elementos que definem este sistema. Basta lembrar que o Hatha Yoga inclui «técnicas corporais», «técnicas mentais» e «técnicas respiratórias» -- as aspas aqui devem-se ao fato de que a divisão entre corpo, mente e respiração é usada por razões didáticas apenas.
Elementos da prática original do Hatha Yoga podem ser encontrados em diversos textos escritos por esses e outros monges nathas. Alguns textos, como o Hatha Yoga Pradipika e o Gheranda Samhita, trazem informações não apenas de técnicas como asanas e pranayamas, mas também deixam claro o sentido original dessas técnicas e permitem entrever o que é o Hatha Yoga e de que forma essas técnicas conduzem à realização do «estado de yoga». Esses textos mostram também que o objetivo das técnicas do Hatha Yoga não é a perfeição técnica. Realizar asanas não tem como objetivo atingir a perfeição técnica na realização de asanas, realizar pranayamas não tem como objetivo a perfeição técnica na realização de pranayamas. A perfeição técnica é um meio, não um fim.
E daí?
A esta altura o leitor pode estar pensando:
-- Eu não pratico Hatha Yoga. Eu pratico [**nome do estilo**]. Isto não tem nada a ver comigo e com a minha prática.
Saber o que é o Hatha Yoga tem tudo a ver com sua prática, por mais fitness, relaxante ou terapêutica que ela seja. A resposta está -- como sempre -- em Nisargadatta Maharaj, um dos grandes mestres nathas do séc. XX: «Somos escravos daquilo que não conhecemos. Daquilo que conhecemos somos donos». Prossigamos.
Decerto você se beneficia com a realização das técnicas corporais usadas no yoga. Os asanas tornam o corpo forte e flexível; os pranayamas ampliam a capacidade respiratória e acalmam a mente. E depois? Se você sabe de onde veio isso tudo, provavelmente saberá dizer para onde isso tudo vai. Se você não sabe de onde veio isso tudo, provavelmente vai passar a vida buscando atingir a perfeição técnica. Então, eu é que perguntaria: e daí? Aonde se pretende chegar com a perfeição técnica? Você sabe aonde você está indo?
Alguns dos «estilos de yoga» que existem atualmente respondem a pergunta com uma espécie de «porque sim»: quando o sujeito atinge a perfeição técnica num determinado asana, em seguida lhe é apresentado outro asana, um pouco mais «difícil». Depois outro. Depois outro. E depois outro, ainda mais «difícil». Coloco «difícil» entre aspas porque a forma como estes métodos compreendem o termo é muito particular: encaixar o pé na nuca é «mais difícil» do que colocá-lo diante do seu rosto. Logo, a «dificuldade» refere-se meramente à dificuldade corporal, à variação das exigências musculares, articulares etc.
Para um verdadeiro hathayogi, realizam-se técnicas para encontrar sua verdadeira natureza, o Ser -- que no yoga recebe várias nomes, como atman (uma tradução ocidental grosseira para este termo, mas que pode ajudar por enquanto, é «alma imortal»). Logo, a dificuldade de uma técnica corporal varia de acordo com a «ocultação» do Ser: se você realiza um asana que você domina, terá facilidade para «ver o Ser»; se realiza um asana que você não domina, perceberá que os sinais que o corpo emite tendem a «ocultar o Ser». A dificuldade está em manter o Ser «visível» o tempo todo.
Além disso, outro objetivo dos asanas é preparar o corpo para a meditação e permitir que ele a «experimente». Este objetivo é que limita a prática de asanas e que dispensa o estudante de passar uma vida inteira praticando centenas, às vezes milhares de asanas, vinyasas (seqüências de asanas) e outras invenções corporais. No mais das vezes, busca-se com estas invenções divertir o aluno e tornar a aula interessante -- fatores que nem de longe têm relação com os verdadeiros propósitos do Hatha Yoga. Outros objetivos destas invenções incluem vender livros, DVDs, cursos e workshops, é claro.
No Hatha Yoga, existem apenas dois asanas realmente fundamentais: siddhasana e padmasana. E a atitude fundamental na prática destes asanas é a permanência mais longa e estável possível. Isto é suficiente para encerrar a prática de asanas e para que o estudante encontre base corporal para outras técnicas, inclusive aquelas comumente chamadas de meditação. Lembre-se: trata-se de manipular a energia vital, não de fazer ginástica.
Talvez o leitor note a partir deste ponto que a distância entre o Hatha Yoga e aquilo que se faz hoje é maior do que se imagina e, portanto, é quase uma licença poética dizer que os métodos atuais têm relação com o sistema criado por Gorakhshanath. Apesar de tudo, há alguma relação. O convite é para que você mesmo procure saber qual é essa relação e reflita sobre os motivos que levaram os métodos atuais a esvaziar o sentido original do Hatha Yoga e que possa, a partir daí, refletir sobre o sentido de sua própria prática. Tenha a certeza de que a capacidade de realizar 108 saudações ao sol ou de colocar os pés atrás da nuca nada significam se o que se buscam e se vêem nestas técnicas são apenas o aprimoramento físico e a perfeição técnica.
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Caso precise de fontes:
-- Leia «O que é Hatha Yoga - V», texto em que se aprofundam alguns dos temas abordados aqui.
-- Leia o Hatha Yoga Pradipika e o Gheranda Samhita, escrituras tradicionais do Hatha Yoga, disponíveis na seção de downloads deste site.
-- Procure saber mais sobre a Natha Sampradaya, a linhagem dos fundadores e perpetuadores do Hatha Yoga
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Notas complementares:
1) Já tive a chance de conversar com alguns praticantes de alguns dos «estilos» mencionados no início deste texto. A maioria recusa-se a reconhecer que o que praticam é Hatha Yoga ou uma disciplina inspirada no Hatha Yoga. A maioria afirma que o seu «estilo» é criação original e que, portanto, ele se distingue de todas as outras formas de yoga, inclusive do próprio Hatha Yoga. É este o caso de muitos praticantes de Swasthya Yoga, Ashtanga Vinyasa Yoga e Sivananda Yoga. Tenho razões para crer que esse tipo de reação se aplica também a praticantes de vários outros «estilos», senão todos.
É evidente que nem todos estes estilos sequer merecem o nome de «yoga»; alguns realmente não passam de ginástica ou de fisioterapia. No entanto, todos eles têm o Hatha Yoga como ascendente. Ignorar isto só é possível por desconhecimento ou por má-fé. Se se trata de desconhecimento, a solução é buscar conhecimento (comece pelos dois itens indicados acima), desde que se reconheça a própria ignorância como um problema importante. Se se trata de má-fé, I rest my case.
2) É decepcionante ver como muitas escolas e a própria mídia apresentam o Hatha Yoga como um «estilo» de... Hatha Yoga. Algumas escolas trazem em sua grade de horários o «Hatha Yoga Contemporâneo» ou o «Hatha Yoga Tradicional», como se houvesse mais de um Hatha Yoga ou como se o Hatha Yoga realmente fosse um «estilo», à semelhança das ginásticas indianas oferecidas nos outros horários. Esta palhaçada equivale a dizer que «cachorro» é uma raça de... cachorro.
Comentários
Entretanto, formas de Yoga anteriores já existiam (Mircea Eliade - Yoga , imortalidade e liberdade / Bhagavat Gita/ Veda).
Existe uma prática de Hatha Yoga que não consta de nenhum dos livros citados o Surya Namaskara. Ele é uma prova antropológica de praticas de Yoga anteriores. Esta prática inclusive é considerada sagrada e no Ashtanga Vinyasana as seis primeiras partes compõe a sua séria.
No livro Historia da filosofia da India, Dasgupta cita que Sutra significa aforismo. Portanto, a palavra asana não tem apenas o significado de acento. Somente por este aspecto podemos deduzir que outras posturas também são possíveis e eram tão conhecidas que não era necessário especifica-las.
No Hatha Yoga pradipika Shiva diz que existem tantos asanas quanto seres vivos no planeta. E este livro foi compilado muito depois da morte de Shiva, certo?
primeiramente, obrigado por seu comentário.
A validade de suas colocações depende do que você considera como «fonte». No caso do Hatha Yoga, a quais outras fontes você se refere?
A trajetória do Hatha Yoga pode ser delineada dos dias de hoje até os primeiros nathas com relativa precisão -- através do shastras, mas principalmente através da própria linhagem dos monges nathas, a Natha Sampradaya. Este delineamento é suficiente para perceber que só existe um Hatha Yoga -- e não um Hatha Yoga estabelecido pelo Hatha Yoga Pradipika e outro estabelecido pelo Gheranda Samhita. Estes dois textos pertencem a úma única tradição; as diferenças entre eles são pequenas se comparadas com sua identidade e unicidade essencial. Além disso, textos sozinhos não estabelecem uma tradição, eles apenas ajudam a organizar tradições já existentes. Talvez isto não seja evidente em algumas tradições religiosas, mas é especialmente válido no caso do Hatha Yoga, onde a linhagem é o que assegura sua perpetuação.
O Surya Namaskar não aparece em nenhum shastra do Hatha Yoga pelo simples fato de não ser uma técnica de yoga, mas sim um tipo de sukshma vyayama (ginásticas inspiradas nos asanas do Hatha Yoga). A adição do Surya Namaskar, assim como de outros tipos de vinyasa, é invenção moderna, totalmente alheia aos propósitos originais dos asanas -- que, aliás, exigem permanência, não movimento.
Entendo que é possível que uma postura seja tão comum que dispense especificações, mas não entendo que seja tão comum ao ponto de ser impossível encontrar qualquer traço de sua origem. É este o caso da maioria das posturas praticadas hoje em dia e disponíveis em muitos manuais: nada explica a origem destas posturas senão a criatividade dos professores e a credulidade dos praticantes, sobretudo nas últimas cinco décadas. E é justamente por este motivo que muitas pessoas caem facilmente nas explicações mitológicas, que, embora divertidas, realmente não podem ser levadas em conta por um pesquisador sério.
Nas tradições podemos afirmar corretamente que o Veda é muito anteior a qualquer outra. Embora no Veda não tenha a palavra Yoga, podemos encontrar os praticantes chamados de Tapasin (praticante de Tapas). Uma das coisas mais comuns neste tipo de praticante é o chamado Ekagrata (postura única) onde os ascetas ficam por até 1000 anos.
Precisamos entender os motivos que fazem surgir uma tradição (uma linnhagem na Índia). Sem isso fica impossível compreender o Yoga. Assim sendo, qual é o motivo que fez os primeiros textos de Hatha Yoga serem escritos apenas no século XI e não antes?
Quando estudamos uma filosofia é necessário entender os componentes do pensamento filosófico.
Caso você pense que o Yoga é uma tradição que não pode ser questionada (um dogma), então não poderemos continuar essa conversa, infelizmente.
acho que você leu o que eu não escrevi ou leu apenas uma parte de meu texto. Se observar bem, no meu texto eu considero tanto as escrituras como a linhagem (e as pessoas que formalmente fazem parte dela, é claro) como fontes adequadas.
Não compreendi o restante de seu comentário. Você realmente crê na possibilidade de uma pessoa ficar 1000 anos realizando tapas? E crê que isso é comum? Em quê isso contribui para esta discussão?
Siga adiante, não sou nem um pouco dogmático.
Sua afirmação (de que todos os tipos de Yôga que contém ásanas são derivações do Hatha) me intrigou. Tanto pelo conteúdo quanto pela veemência. Vejamos:
De acordo com meus estudos, Gôraksha Natha e a criação do Hatha Yôga são datados aproximadamente no século XI d.C.
O Yôga Sútra de Pátañjali cita os ásanas (II-29) e depois descreve a interpretação correta acerca deles (II-46). No que me consta, a data de referência deste texto de Rája Yôga é século III a.C.
Como este está datado com quase 14 séculos de antecedência, o que faz você dizer que o Hatha deu origem aos demais estilos que contém ásanas?
Um forte abraço e boas práticas!
obrigado por seu comentário.
Como você deve saber, o que Patañjali descreve em II-46 não são asanas, mas dois atributos dos asanas.
É evidente que antes dos nathas (os criadores do Hatha Yoga) já se praticavam asanas. Contudo, tudo que se pode deduzir do que Patañjali diz é que asana é apenas o suporte para a meditação. O verso citado diz apenas que esse suporte deve ser (i) fácil/confortável e (ii) firme/estável.
Somente com o Hatha Yoga surge a sistematização de técnicas corporais com o propósito expresso de levar a samadhi, o que naturalmente inclui as técnicas corporais e prânicas dos tântricos e conseqüentemente implica uma visão (que inexistia antes do Hatha Yoga) um pouco distinta daquela sustentada por Patañjali.
Talvez você queira ver este texto, que trata de forma mais objetiva das diferenças entre o Hatha Yoga e o Astanga Yoga, de Patañjali.
Abraço e boas práticas!
Concordo com você. Parece certo que a interpretação dos ásanas na linhagem de Pátañjali difere imensamente da interpretação do Hatha.
Confesso no entanto que, ao olhar essas imagens relacionadas abaixo, não deixo de pensar que a prática de ásanas remonta a um período muito mais antigo do que o de Gôraksha Natha ou mesmo Pátañjali. Afinal, não foi Shiva, o criador do Yôga, também um bailarino?
Abraços e boas práticas também!
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cc/Shiva_nataraja_hg.jpg
http://www.lotussculpture.com/mm5/graphics/00000001/1-tandava-shiva.jpg
http://www.lotussculpture.com/mm5/graphics/00000001/Shiva-dancing-z.jpg
http://www.exoticindia.com/details/sculptures/xk66.jpg
Na verdade, o que há não são diferentes interpretações, mas diferentes exposições dos asanas. Como indiquei em meu comentário anterior, Patañjali define asana por seus atributos, enquanto que os nathas, além de explicar seus atributos, definem um repertório e uma terminologia específica para os asanas. Porém, o sentido e o objetivo são os mesmos.
As esculturas que você mostrou não me parecem indícios de que os asanas existiam antes de Patañjali (e, portanto, muito antes dos nathas). Afinal, Shiva aí representado era um dançarino, o que vemos são retratos de uma dança, isto é, fragmentos de um movimento. Mesmo assim, você tem razão em imaginar que esse repertório de asanas já existia antes dos nathas (os fundadores do hathayoga), já que um sistema como o hathayoga não cria nada, apenas estabelece um conhecimento que já vinha sendo aplicado para realizar a libertação -- como ocorre com a maioria das tradições espirituais.
É isso aí.
Abraço pra você.