No início de meus estudos de yoga deparei-me com a transcrição de uma entrevista com um dos mais antigos instrutores do método Iyengar. Em determinado momento o entrevistador perguntou a ele o que significava ser um yogin. Surpeendentemente, o instrutor respondeu que não era um yogin, deixando subentendido que não poderia responder a pergunta. Em seguida explicou que nunca teve a pretensão de ser um yogin.
Fiquei surpreso.
«Oficialmente» esse professor ensina «yoga». O nome «yoga» está estampado nos certificados que ele assina e nos livros que ele recomenda. Yoga é o cerne de tudo o que ele diz fazer, das conversas que ele mantém, pessoas vão até ele e se interessam por seus cursos e workshops porque se trata de yoga. Mas ele não se considera um yogin.
Como isso é possível?
Existem várias formas de explicar isso. Como de costume, vamos por partes. Estamos diante de mais um tema complexo e tratado porcamente pela «mídia especializada» e por «professores consagrados».
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1) Yoga é a realização do «Eu». Na prática isto significa perceber que o «Eu» (a.k.a. «alma imortal», aquilo que você realmente é) transcende e abrange a existência corporal e mental, não o contrário. Logo, yogin é o indivvíduo que realizou o yoga para si e vive de acordo com essa realização.
2) Ao mesmo tempo, yoga é também o processo e o conjunto de técnicas através das quais essa percepção se realiza. Logo, yogin também é a pessoa que se dedica com disciplina e sinceridade a esse processo e a esse conjunto de técnicas tendo em vista a realização indicada no item anterior.
Note que nestas definições não há nenhuma alusão a ensino, aulas e escolas de yoga. A partir daqui é adequado perguntar o que é ser um professor de yoga e quais as condições para cumprir esse papel.
3) Professor de yoga é quem ensina yoga. Só pode ensinar yoga quem sabe o que é yoga. Só sabe o que é yoga quem preenche uma das duas condições indicadas acima, isto é, quem
i) realizou o yoga (item 1)
ii) dedica-se à disciplina do yoga (item 2, que está conectado com o 1)
Nestes dois casos (i e ii) estamos diante de um yogin. Logo, para ser professor de yoga é necessário ser yogin, QED.
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Surge aqui um problema importante: como se identifica a realização do yoga?
A resposta é: não se identifica. Se realmente compreendemos o que os itens itens acima dizem e se confiamos minimamente nas pessoas, somos levados a crer que todo aquele que se diz professor de yoga realmente é professor de yoga, isto é, realizou o yoga para si ou pelo menos está se dedicando à disciplina que leva à realização.
Disto decorrem outros dois problemas.
O primeiro problema é evidente: nem todos os professores estão seguindo o caminho da realização do yoga.
Alguns professores sequer vislumbram que há um fim atingível e poucos realmente chegaram à realização do yoga em suas vidas. Cursos, diplomas e certificados são a forma contemporânea de lidar com esse problema. Quando procura uma escola de yoga o iniciante não precisa confiar na pessoa que se apresenta como professor ou desconfiar dela. Basta ele ver as «credenciais»: o diploma exposto na parede, o extenso currículo divulgado no site, sua ascendência, sua «fama» etc.
O segundo problema é ainda maior: se o próprio professor, real e presente, não serve de base para que outras avaliem sua realização como yogin, certificados, currículos e ascendência servem?
Você não confia na pessoa, mas confia no que papéis, textos e certificados dizem sobre ela? Se a simples presença da pessoa e o contato direto com ela não podem lhe dizer nada a respeito da realização dela como yogin, você realmente crê que papéis e textos podem? Soa absurdo, mas é isto que move o yoga hoje em dia. Não surpreende que haja pessoas interessadas na regulamentação da profissão de professor de yoga, como se, além de instituições particulares, o governo também tivesse autoridade para avalizar o ensino do yoga no país.
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Há mais um problema.
Entre professores de yoga é bem comum a idéia de que um professor de yoga é uma pessoa comum, não necessariamente um mestre iluminado.
A idéia que a maioria das pessoas têm de «pessoa iluminada» foi estabelecida pela mídia, pelos filmes, pelo «orientalismo ocidental» e pelo misticismo da Nova Era. Estas coisas ensinam que um iluminado é alguém que usa barba, que já tem certa idade, cuja fala é breve e incisiva e ao mesmo tempo doce, que sabe tudo e que em determinados e discretos momentos revela-se um ser dotado de «poderes».
Porém, a iluminação é algo extremamente simples (eu não disse «fácil»), porque não está relacionada a fazer ou a ser, mas a perceber. Quando se compreende isso, a simples menção a uma aura mística soa idiota ou ingênua, porquanto revela que quem diz «oh, o [nome do sujeito] é um mestre iluminado!» só disse isso porque já se colocou de joelhos diante do tal mestre iluminado.
Alimenta-se assim a idéia de que iluminação é algo inatingível para mortais comuns e que guru é uma espécie de semideus. E, se a iluminação é inatingível para mortais comuns, estes professores se sentem dispensados de compreender tudo que se diz a respeito de «iluminação» e, portanto, do próprio yoga como caminho de realização.
Para comprovar esta tese basta notar a quantidade significativa de professores e praticantes avançados que não meditam, não lêem, não estudam e que depositam suas fichas no empirismo puro e simples. Mas o que eles entendem por empirismo é uma atitude pé no chão que reduz a prática às técnicas corporais, mais ou menos à maneira de praticantes de musculação -- com a diferença de que nenhum praticante de musculação acha que «praticando, tudo se realizará».
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Com base no que foi dito até aqui é fácil saber os motivos que levam um professor de yoga a evitar o rótulo de «yogin».
1) Se você se declarar yogin, você será cobrado como tal por seus alunos, pessoas que, naturalmente, costumam chegar à escola portando as idéias mais estapafúrdias sobre o que é um yogin. Desfazer confusões dá trabalho, né? É natural também que às vezes o professor esteja mais preocupado em manter-se fiel a um método, dar uma «aula agradável» e aumentar o número de alunos em seu studio do que em assumir o abacaxi de esclarecer temas difíceis.
2) No caso do método Iyengar, há o fato do próprio Iyengar já ter dito que o objetivo de seu método é ensinar apenas dois (02) conjuntos de técnicas (de um total de oito): asanas e pranayama. É evidente que dois (02) conjuntos de técnicas não fazem um yogin e não transformam um «método de yoga» em yoga realmente. Em outras palavras, quando disse que não era yogin, o professor do início deste texto estava apenas sendo sincero. Mas, se tivesse sido totalmente sincero, teria dito que também não era professor de yoga.
3) A mídia -- especializada ou não -- dá espaço para todo tipo de empulhação, como o «professor de yoga que não é yogin» e o «método de yoga que não é bem yoga». O que preocupa aqui é o fato de que é essa mídia que molda a mentalidade das pessoas que procuram o yoga, inclusive aqueles que supostamente não são mais leigos.
Os poucos críticos que se manifestam atribuem estes problemas a «falhas ocasionais» e à obsessão pela prática postural, como se os professores que seguem essa direção assim o fizessem por acidente ou por alguma falha moral alheia a eles -- da mesma forma que uma pessoa em dieta cai no pecado da gula.
Isto descarta a hipótese de que haja uma intenção comum e subjacente a todos os métodos posturais e que estes métodos possam significar algo. É evidente que todo método e tudo aquilo que se faz profissionalmente afirmam algo, isto é, tem significado e transmite uma mensagem. E é evidente que quem atribui todos os problemas aqui relatados a «falhas ocasionais» não está fazendo crítica alguma, está sendo condescendente.
Ora, os únicos professores que precisam de condescendência, não são os do yoga, são os da rede pública, que ganham mal pacas e que com freqüência trabalham em ambientes muito ruins. Definitivamente, não é este o caso dos professores de yoga.
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Abraço