Os adolescentes do yoga

Krishnamacharya orientando seu filho, Desikachar, numa das
inúmeras demonstrações (de yoga?) que realizou ao longo de sua vida.

Quando eu tinha -- vamos lá -- meus 15 ou 16 anos e sequer tinha ouvido falar de yoga, eu tinha a tendência que quase todo adolescente tinha. Chame de propensão ou inclinação se quiser. Era aquela coisa de duvidar de tudo, sobretudo da autoridade dos pais, de admirar um parente um pouco menos equilibrado (justamente por ser menos equilibrado), de querer quebrar regras, ultrapassar limites, romper padrões.

É claro que nada disso acontece impunemente. Qualquer adolescente saudável faz essas coisas e, se ele continua saudável, chega à maturidade não sem uma dose (crescente e igualmente saudável) de vergonha em relação a esse histórico. Tudo isso é muito natural.

Igualmente natural é a ignorância juvenil em relação ao fundo de estabilidade que permite chutar o pau da barraca. No meu caso, eu ignorava o fato de que a eventual rebeldia só acontecia e só era percebida porque no fim do dia haveria banho quente, janta e uma cama confortável. Ah, sim, havia café da manhã e almoço também. Eu ignorava o fato de que a minha saúde física, mental e emocional aos 16 anos era o resultado inevitável de ter sido bem tratado até então e de ter recebido bons cuidados todos os dias, desde o nascimento.

Também seria natural, nestas condições, ter como principal prática interior o exercício da mais pura, absoluta e simples gratidão. Mas outra coisa muito natural no adolescente é ter uma vida interior absolutamente confusa -- porque, como todos sabem, é a fase em que a vida interior começa a tomar forma e a ganhar alguma ordenação. Como a vida exterior já era um fato desde a primeira infância, ela tende a se manter no topo da vida do sujeito e é por isso que a construção da vida interior é um processo quase sempre catártico, nervoso, complexo e difícil.

A maior parte das dificuldades observadas neste processo devem-se ao choque entre dois universos: de um lado, a necessidade de estabelecer-se materialmente (afirmação exterior); de outro lado, a necessidade (moral) de reconhecer aquele fundo de estabilidade que ofereceu proteção e alimento e de agradecer por isso constantemente (afirmação interior). No fundo, todo jovem sabe que sua principal obrigação é, à maneira de Confúcio, carregar seus pais nas costas até o fim da vida, mas a própria condição juvenil o impele a fazer outras coisas geralmente sem sentido -- porque tais ações são a própria busca de sentido -- e às vezes idiotas.

Esta introdução -- menos breve do que eu planejava -- ajudará a compreender o que quero dizer com o título deste texto.

Existe no yoga um tipo de professor e de estudante que pode ser classificado como adolescente. Ele também nega a ascendência, liga-se a tendências malucas e tenta romper padrões e ultrapassar limites.

À maneira do adolescente comum, o adolescente do yoga também cresce graças à existência de um fundo de estabilidade que ele gosta de ignorar. Esse fundo de estabilidade não é apenas a organização da disciplina que lhe permite realizar uma prática e ter uma direção dentro do yoga, mas sobretudo o que chamarei de «a sombra de Shiva».

Krishnamacharya na clássica foto de divulgação de sua escola (de yoga?).

Por imbecil que seja a mais recente moda relacionada ao yoga, «a sombra de Shiva» permanece. Se você carrega um OM tatuado nas costas ou no pulso ou no tornozelo; se você entoa o OM no início de sua aula de ginástica; se você reconhece a milenaridade do yoga; enfim, se você possui alguma imagem de algum deus hindu -- em todos estes casos, eis «a sombra de Shiva». E assim, graças à existência e à permanência dessa sombra, qualquer imbecil se sente à vontade para inventar modas cada vez mais imbecis, pois sempre haverá a chance de entoar o OM, de usar a imagem do deus azul, de fazer cara de meditação e de, afinal, nomear aquela merda toda de... yoga (problemas com palavrões? prossigamos) e de validá-la com as dúzias de séculos de história dessa tradição.

Então, o sujeito faz polichinelo e se pendura em panos e suspende uma moça magricela e fotogênica no ar e sobe montanhas para posar para fotos equilibrado numa mão só e chama tudo isso de yoga. Ora, tais coisas em nada diferem do que adolescentes comuns fazem fora do território do yoga. Por absoluto desinteresse em uma tradição genuína, eles buscarão Paulo Coelho, Mme. Blavatsky, Fritjof Capra, Deepak Chopra, Dalai Lama e até mesmo Pe. Fábio de Mello, Gabriel Chalita e Leonardo Boff. Por absoluto desinteresse em música genuína, ouvirão músicas de péssimo gosto pelo simples prazer de testemunhar a aversão alheia. Por absoluto desinteresse em idéias consistentes e reflexões autênticas, dialogarão à base de slogans e clichês. E todas essas coisas, de Paulo Coelho aos clichês, serão submetidas todos os dias a transformações. O universo adolescente é por definição o universo do caos.

Choudhury Bikram sobre uma de suas alunas ao final de uma aula (de yoga?).

Quando o adolescente do yoga quer se estabelecer materialmente (afirmação exterior), o que ele faz é novo, único, especial. Quando, inevitavelmente, ele é criticado por causa da inconsistência natural de suas criações (porque a última coisa de que uma tradição milenar precisa é inovação movida por intenções mercadológicas), o que ele faz é yoga. E quando, no silêncio e no isolamento, ele se depara com a necessidade (moral) de reconhecer aquele fundo de estabilidade que lhe fez crescer e de agradecer por isso (afirmação interior), ele faz xixi nas calças e volta ao ritual mambembe da afirmação exterior, geralmente entoando lemas como «tudo é Um» ou  «não existe certo ou errado» ou, ainda, «cada um tem sua verdade». E é por isso que tantos adolescentes do yoga procuram coisas como rodas de chá alucinógeno e maconha, sangas new age e rituais de pirolatria, surfe e atividades físicas «naturais», massagens tântricas e receitas do ayurveda. Mesmo reconhecendo a necessidade de gratidão pelo fundo de estabilidade que os sustenta, procuram experiências cada vez mais boçais e dissonantes e chamam isso de «celebrar a vida».

Há vários adolescentes do yoga dando aulas. Na verdade, alguns leigos e iniciantes têm mais maturidade no yoga do que muitos professores, porquanto dão-se aquele tempo necessário para que a atenção se estabilize na base que lhes é oferecida -- é a história da xícara vazia. Quando crescem, quando os pêlos começam a surgir nas axilas e quando a voz começa a mudar, então sentem que já estão prontos e que podem sair voando. Mas a «sombra de Shiva» permanece. E permanece mesmo numa sala aquecida e melada, na terceira série de ginástica ashtangi, no uso dos props da fisioterapia do sr. Iyengar, no pensamento positivo dos livros de auto-ajuda e dos rituais neobudistas e vaishnavas disfarçados de yoga e na busca frenética por não-sei-o-quê. O yoga está nessas coisas não como realidade, não como substância ou fundo, mas como heresia, como ofensa, como insulto, como antítese, porque é isso que os adolescentes mais gostam de fazer. Que façam isso aos 15 ou 16 anos, como qualquer adolescente, entende-se -- e essa atitude até poderia inspirar, mais tarde, um yoga tão profundo quanto o de grandes mestres, já que em parte a atitude yogi consiste em impedir que as camadas se acumulem e se acumulem e se acumulem sobre o Eu.

Mas os adolescentes do yoga não são adolescentes normais -- não são adolescentes e também não são normais. São senhoras e senhores que quase sempre já passaram dos 40 e que, depois de mais de 20 anos de «prática», ainda não sabem para onde estão indo e ainda não perceberam que, ao contrário do que ensinva o slogan, nem tudo «aconteceu». Para eles e para seus alunos e para o yoga como um todo, seria mais proveitoso se simplesmente saíssem em busca do fim do arco-íris. Para sempre.

*

Nota:

Se as descrições acima parecerem abstratas demais e você não tiver certeza se está diante de um adolescente do yoga, recomendo fazer à pessoa as perguntas seguintes:

1) Mostre as imagens que ilustram este texto e pergunte para que servem essas posturas.
2) Pergunte o que ele acha de Hermógenes, do «mestre» DeRose e de Iyengar.
3) Se for um professor ou «estudioso do yoga», pergunte o que ele está lendo.
4) Pergunte o que ele acha da inclusão da meditação nas aulas de yoga.
5) Pergunte se ele tem interesse num curso de 500 horas de yoga.

Boas respostas são:

1) Para nada.
Sério, «posturas de yoga» funcionam bem para fotos, mas funcionam muito mal para o yoga.

2) São bons professores de auto-ajuda e terapia corporal.
Aparentemente as três pessoas citadas começaram mostrando que sabiam o que era o yoga, para que a tradição servia, quais direções deveriam tomar como yogins e como professores. «Algo» aconteceu que os transformou em grandes hits da yogosfera, condição geralmente incompatível com a de yogin.

3) Shastras.
Shastras são boas leituras, mas se não há ascendência ou orientação, a leitura causará danos. Livros que foram escritos nas últimas cinco décadas não podem ser levados a sério, a não ser como amostra de um weltanschauung meio flower-power, que ri de qualquer tradicionalismo.

4) [Risos]

5) 

Comentários

Quil disse…
Divertido e brilhante!
Anônimo disse…
Roquenrol!
yansergames94 disse…
Gostei das respostas :)
yansergames94 disse…
gostei das respostas :)