A minha verdade merece uma medalhinha de ouro.
Envolver-se demais com o yoga pode se tornar um problema. Você começa a olhar o mundo através do filtro do yoga. Todas as coisas passarão a ser vistas e compreendidas atrávés dos conceitos, dos princípios e até mesmo das técnicas do yoga. Em pouco tempo você estará fazendo «posturas de yoga» na fila do banco, associando ahimsa ao vegetarianismo, fazendo ghee em casa, tocando harmonium e usando jyotish para explicar a personalidade dos amigos -- tudo isso com o verniz dos termos em sânscrito.
Destes hábitos, que eclodem quando o envolvimento com o yoga torna-se sério, sem dúvida um dos mais nocivos é a repetição psitacídea de lemas e jargões descontextualizados.
Comecemos com um exemplo brando.
«Namaste», diz o professor ao final da aula. Mas antes disso você viu vários alunos se cumprimentando com essa palavra. E mais tarde, ao sair da escola, novamente a mesma saudação. Quando você conversa com o professor ou com um aluno, com freqüência o encontro é iniciado com «namaste». Se você troca emails com algum amigo ou colega do yoga ou com o professor, eis o «namaste» no final da mensagem.
«Namaste» significa simplesmente «eu te saúdo», o que no português é o mesmo que «olá» ou, mais formalmente, «saudações». Em blogs genéricos você poderá ver que namaste significa «o deus que habita em mim saúda o deus que habita em ti», mas isto é uma interpretação, não uma tradução.
Se se trata de uma saudação simples e se existem diversos equivalentes em nosso idioma, por que usá-lo? Por um motivo simples: é uma marca de distinção, assim como o «heil Hitler» dos nazistas ou o «salve Jorge» de algumas religiões de origem africana. Ao usar uma saudação específica -- com freqüência associada a um gestual específico --, você se distingue das pessoas que não fazem parte do grupo de que você faz parte.
Outras expressões relativamente comuns no yoga são «hari om» (ou «harih om»), «jai ma» (ou «jaya ma») e «adesh» (ou «aadesh»), cada uma com especificidades que não cabe analisar agora, mas que cumprem a mesma função indicada acima: distinção, diferenciação, associação, identificação etc. Através de uma saudação específica você se separa da massa ignara e passa a fazer parte de um grupo seleto de pessoas maravilhosas e iluminadas.
Até aqui, sem problemas. Adolescentes fazem isso o tempo todo. Aliás, quase todo o vocabulário adolescente é composto de palavras às vezes incompreensíveis. As gírias são criadas para isso. Tem que ser incompreensível, tem que ser hermético. O que torna as gírias e as saudações inofensivas é o fato de que elas não deformam os significados. Uma saudação continuará sendo uma saudação. No máximo, como no caso do «namaste», amplia-se seu significado e, onde havia apenas uma saudação, passa-se a ver uma oração ou uma homenagem. Às vezes inventam-se novos termos para um objeto velho conhecido, o que não implica inventar novos usos para velhos termos.
Algo bem diferente ocorre com três lemas largamente usados no yoga hoje em dia. A partir daqui as coisas ficarão menos brandas. Vejamos o primeiro lema.
1) «Yoga é união»
Fiz duas análises desse lema, uma aqui e a outra aqui.
Um resumo do que eu disse nesses artigos é o seguinte: «yoga é união» é um lema utilizado para pedir, sugerir ou justificar a tolerância para com a inserção de todo tipo de idiotice no yoga, desde novos métodos a novas atitudes. Você quer propor um método novo de yoga que consiste em realizar posturas corporais numa banheira cheia de azeite de dendê? Tudo bem, pois yoga é união. Você quer registrar seu método de yoga para poder processar quem quer que o use sem sua autorização? Que malvado você é, não sabe que yoga é união? Vamos nos abraçar vestidos com roupa de neoprene e comer um pudim de incenso e fazer uma roda em cima de uma mesa e cantar mantras arrotando e ler o Gita de trás pra frente em uníssono no final de nossa aula? Afinal, yoga é união.
Em outras palavras: pode-se fazer qualquer coisa do yoga, porque o propósito profundo do yoga é ser um ímã de qualquer coisa que se possa pensar, inventar ou fazer.
Qualquer pessoa alfabetizada é capaz de perceber a babaquice dessas proposições, todas elas baseadas numa interpretação extremamente rasteira de um dos significados etimológicos do termo «yoga». E por isso, por causa das obviedades aqui presentes, não vou me estender em explicações neste particular. Se algo aqui não for suficientemente óbvio, pergunte-me e explicarei.
2) «Tudo é um»
Este lema é muito parecido com o lema anterior. Ele é uma das inúmeras versões «new age» do panteísmo hindu. Colocando de forma breve, o panteísmo hindu ensina que Deus está em todas as coisas e em todos os seres. Logo, nada pode ser recusado, nada deve ser evitado, nada precisa ser excluído. Como explicava Alan Watts em seu interessante «A Sabedoria da Insegurança», recusar qualquer coisa que o mundo lhe ofereça é como virar o rosto numa direção e querer que suas orelhas não se movam junto. Assim é com o panteísmo.
Vários sábios já explicaram a conexão com Deus não como uma ação, mas como um auto-abandono, um laissez-faire, uma descontração dos esforços para a busca ou para a recusa de Deus. Se Deus está em você e em todas as coisas, não há como estabelecer ou impedir a conexão com Ele, já que nunca existiu tal coisa como uma «conexão» ou uma «desconexão». Tais palavras servem apenas para distrair a mente.
Mas então o sujeito se aproxima esbravejando e empunhando o «tudo é Um», como quem ergue uma tocha ou ameaça cortar o ar com uma foice. Observe as situações pitorescas em que se lança mão de tal frase.
Se tudo realmente é um, se de fato a realidade é uma unidade transcendente, não é necessário usar qualquer frase que coloca essa realidade como uma tese, como uma afirmação, como algo a ser defendido -- porque a própria realidade deveria bastar para demonstrar, para além de qualquer dúvida, que tudo é um. O mundo está aí, mostrando o tempo todo sua inteireza, sua indivisibilidade.
O problema é que isto só funciona para quem realmente abriu os olhos para essa inteireza. Definitivamente não é o caso de quem repete a frase «tudo é um», porque coisas como afirmação e repetição são parte do esforço vão de experimentar a Unidade com uma colher de café e de demonstrá-la com papel e lápis. Em termos mais ocidentais: a prova da existência de Deus prova apenas que somos capazes de atingir um nível de intelecção da transcendência em que a mente finalmente pára de encher o nosso saco.
Falei um pouco disso aqui. Naquele exemplo pudemos ver um sujeito obviamente sincero e bem-intencionado que tenta mostrar que «tudo é Um», mas é surpreendido quando percebe que a frase só vale quando tudo vai bem -- ou melhor: que a frase só vale no plano estrito das punhetas mentais a respeito de Deus. Quando se trata de dialogar, é melhor fazer o que todo mundo faz: ser educado, manter pelo menos um dos pés na realidade, pesquisar e depois opinar, concordar e discordar etc. -- porque, oras bolas, o mundo é feito de luz e sombra, de boa e de má digestão.
Em resumo, «tudo é Um» é uma frase que se refere ao plano da transcendência. Se você vive no plano da transcendência, não é necessário provar nada. Se você não vive no plano da imanência, não é suficiente provar nada. No plano da imanência -- que é onde ocorrem discussões como esta -- , cebolas continuam sendo cebolas e professores de yoga continuam sendo professores de yoga e é claro que a linguagem precisa respeitar isso caso queiramos de fato estabelecer comunicação com outras pessoas.
3) «Não existe verdade»
Das três frases que constituem o cerne deste texto, esta é a pior de todas e também a mais fácil de invalidar.
Primeiro, é óbvio que existe verdade e ela não é sua ou minha, é apenas a verdade.
Você atesta a existência da verdade todos os dias quando se olha no espelho e se reconhece como a mesma pessoa que você viu no dia anterior, no ano anterior ou na década anterior. De pouco adiantaria que outra pessoa se pusesse diante de você e dissesse que você é uma caneca, um repolho ou o John Malkovich -- supondo que você não seja o John Malkovich. O fato de você querer ser essas coisas ou de acreditar ser essas coisas não muda a verdade, que é uma só: você é você e é este fato que permite que se percebam desejos como desejos e crenças como crenças. Em resumo, e de modo mais simples: a vida só é possível porque a verdade existe. O fato de você acreditar em outra coisa além da verdade não torna a verdade menos verdadeira, apenas o torna um pouco mais imbecil.
Poderíamos ir aquém e notar que a verdade se expressa até em coisas corriqueiras, como a comunicação. Se eu digo a você «leia este livro» e ao mesmo tempo estendo um livro a você, há um conjunto de fatos que permitem que a mensagem seja compreendida, recebida e assimilada: o imperativo da frase, o direcionamento do imperativo (que não foi dito para um par de sapatos ou para uma lontra, mas para uma pessoa), o livro mencionado, que é o livro mostrado. Todas estas coisas tornam inquestionável o comando, o objeto, o sujeito a quem se dirige o imperativo.
Como explicado no item anterior, toda a comunicação é uma amostra de que a verdade existe. De outro modo poderíamos comer a verdade como se come uma maçã, dobrar a verdade como se dobra um lençol ou irrigar a verdade como se irriga o solo. Mas a verdade é algo diferente de uma maçã, de um lençol e de uma porção de terra, exatamente do mesmo modo que você é diferente de uma caneca, de um repolho e de John Malkovich -- e estas diferenças não são a minha verdade ou a sua verdade, são a verdade simplesmente. O mundo realmente é feito de luz e sombra.
***
O que os três exemplos têm em comum? Eles tentam afundar uma tradição genuína como o yoga num lodaçal de subjetivismo. Uma vez afundado neste lodaçal, não há saída senão acostumar-se a comer lodo e a viver no lodo -- lembrando que em pouco tempo não haverá como diferenciar o que é lodo e o que são as fezes que você mesmo produzirá. Há exemplos numerosos disso hoje em dia.
Um exemplo que eu costumo citar com freqüência é o que eu chamo de «neotradicionalismo». A base dessa tese está explicada em meu artigo anterior e condensada neste trecho:
(...) se o sujeito estuda sânscrito, se estuda as escrituras sob orientação de um scholar ou de um swami, se está formalmente ligado a alguém de nome difícil, não é impróprio ele dar ao termo yoga a acepção que lhe parecer adequada e conveniente, por exemplo, para promover um workshop de «Acro Yoga».Hoje há nathas -- outrora considerados os guardiães da tradição do hathayoga -- ensinando o método Iyengar, o que demonstra que o subjetivismo é capaz de colocar de joelhos até mesmo as linhagens consideradas mais sérias. Quando tais coisas são questionadas, quando alguém se atreve a levantar uma crítica a respeito desse estado de coisas, os três lemas analisados neste artigo são sacados da manga como coringas. Esta atitude -- a repetição de lemas -- equivale àquela outra, muito infantil, que consiste em tapar os ouvidos e começar a dizer bem alto «lálálálálálálálálálá-não-estou-te-ouvindo-lálálálálálálálálálá...»
Afinal, se yoga é união, eu posso unir o que eu quiser com o yoga. Se tudo é Um, qualquer coisa que eu fizer será a expressão do yoga, como palitar os dentes. Se não existe verdade, realmente não importa distinguir o certo do errado, tampouco há sentido em aproximar-se seriamente da tradição.
E assim segue o yoga -- o seu, o meu, o nosso.
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