Desde que comecei meus estudos tenho conversado com muitas pessoas sobre yoga. Conversei com iniciantes, com praticantes avançados e com professores. Com freqüência faço as mesmas perguntas, já que os temas essenciais não variam em função da condição da pessoa no yoga. Por exemplo, «por que você pratica yoga?» é pergunta que se abre a qualquer pessoa que efetivamente esteja praticando yoga, seja um praticante de longa data, seja um novato que se iniciou semana passada.
A despeito da diversidade dos perfis e dos interesses dessas pessoas, noto algo peculiar no emaranhado de perguntas e respostas que acumulei: existe um núcleo que não se altera; ali, as perguntas são encaradas quase sempre da mesma forma e, portanto, as respostas emitidas praticamente não variam. É como se todos dispusessem do mesmo manual de instruções e do mesmo vocabulário e, conseqüentemente, tivessem as mesmas idéias a respeito do yoga e só pensassem as mesmas coisas e fizessem as mesmas coisas.
O leitor com alguma experiência no yoga poderá imaginar, a esta altura, que me refiro àquele tipo de convergência de idéias e ações que precede períodos de harmonia entre os seres ou que sinaliza ambientes permeados por esta harmonia. Infelizmente não são estes os casos. A unicidade aqui não é a que se busca no yoga, aquela unicidade em que se repete -- ad nauseam, mas por uma necessidade justificada -- que tudo é Brahman. A unicidade aqui é tão-somente o velho espírito de torcida: o medo de ser diferente, de pensar diferente, de agir diferente, de sair da curva.
A repetição de certos lemas demonstra este estado de coisas. «Yoga é união» é um destes lemas. Toda vez que esta frase é repetida, me vem à mente a imagem de Gorakhshanath engasgando com a própria saliva (suponhamos que isso seja possível) e arregalando os olhos em busca do emissor da frase. Não é necessário olhar com atenção para notar que a pessoa que diz (geralmente em tom solene e conciliador) «yoga é união» não sabe o que é «yoga», não sabe o que é «união» e não sabe o que é o princípio de identidade representado pelo verbo «ser».
Ao leitor curioso e afeito à diversão, recomendo a leitura de «Yoga é união?», onde tratei do assunto de forma mais objetiva. O que importa aqui é que lemas e outros slogans não seriam um problema genuíno se, afinal, acima deles pudéssemos notar uma legião de praticantes conscientes do que estão fazendo e dizendo. Com consciência é possível fazer qualquer coisa acessível a um ser humano, sobretudo aquelas consideradas indesejadas, ridículas ou imorais pela maioria dos seres vivos -- até mesmo repetir lemas, slogans e outras frases de efeito, por mais metonímicas e insuportáveis que sejam.
Não há regras no yoga. Fui claro? NÃO HÁ REGRAS NO YOGA. Se isto estiver claro o suficiente, podemos prosseguir.
O leitor astuto poderá argüir: mas e as regras de execução de asanas e de outras técnicas do yoga? A resposta está dada na própria formulação da pergunta: não são propriamente regras, mas técnicas, modos de realizar determinadas ações que, realizadas de outra forma, possivelmente não trarão resultados tão bons.
Por exemplo, o jala neti é um dos shatkarmas do Hatha Yoga, uma das técnicas de purificação que normalmente precedem a prática de asanas. Faz-se o jala neti com água levemente salgada e morna. Todo praticante é livre para usar molho de pimenta em lugar de água levemente salgada e morna. Eu não recomendo a troca, mas técnicas são técnicas, não regras morais fiscalizadas por inspetores yogins. Pode-se, da mesma forma, praticar asanas sobre uma cama de pregos ou sobre um braseiro. Eu preciso mesmo dizer que estas coisas são «erradas»?
Pareço estar me desviando do propósito original deste texto, mas estas voltas tinham como objetivo demonstrar o seguinte: note como as pessoas que «gostam de yoga», gostam, na verdade,
-- das técnicas do yoga;
-- dos benefícios destas técnicas;
-- do ambiente em que estas técnicas são realizadas;
-- da disciplina do yoga (tomada aqui da forma mais elementar possível);
-- das pessoas que se reúnem para realizar estas técnicas e para conversar sobre os seus benefícios.
Arrisco-me a afirmar que muitas pessoas encontram prazer na confusão entre cada um desses itens e o yoga mesmo. Eu poderia ir além e dizer que esta confusão é intencional, mas é evidente que não é. Para que houvesse intencionalidade seria necessário haver um conhecimento que definitivamente não existe. Assim como muitas pessoas não distinguem o yoga dos itens citados acima, com freqüência elas também não distinguem os próprios itens uns dos outros. Por exemplo, é bem comum a confusão entre a prática do asana, o domínio técnico do asana, a obtenção do benefício direto do asana e a compreensão do asana como um dos degraus que levam a moksha.
É neste sentido que uma frase simplória e abstrata como «yoga é união» torna-se também uma técnica. Qualquer frase repetida infinitas vezes e colocada em prática torna-se uma técnica, mesmo que «colocar em prática» signifique apenas abraçar árvores, aprender a fazer incenso num workshop numa tarde de sábado ou reunir-se com a turma do yoga para ir a um restaurante vegetariano. Cada uma destas coisas pode ser ou pode não ser yoga. Cada uma destas coisas pode ser ou pode não ser a «união» a que o lema se refere. Tudo depende do que chamo de experiência da solidão.
Não há dúvidas de que o ser humano é um dos animais mais gregários que existe. Deve ser por isso que há nomes específicos para o ser humano que dispensa o gregarismo e que dá as costas para todo tipo de sociabilidade -- trata-se, em todos os casos, de uma pessoa incomum e que só pode ser tolerada se nela for colado um rótulo que economize confusões e desentendimentos. Acredito que o leitor já tenha conhecido ou tenha ouvido falar de alguém assim, que escolhe viver a própria vida, mormente em silêncio e sob aura algo misteriosa.
Já me disseram -- e entendi -- que o yoga é disciplina interior, isto é, prática cujo propósito é o autoconhecimento. Nas primeiras vezes em que me deparei com essa idéia, lembrei-me de minhas aulas de religião no ginásio. Eu tive a sorte de ter um bom professor, um grande sujeito que colocava as parábolas do Evangelho em linguagem simples e direta. A partir daquele ano ficou suficientemente claro para mim que religião era uma disciplina interior. Dizem que religião vem do latim «religare», isto é, reconectar o homem e Deus. A descoberta da etimologia não me surpreendeu, antes me satisfez e confirmou aquilo que eu já havia imaginado com as aulas de religião do ginásio.
Embora o yoga não seja um «religare», há na religião e no yoga o elemento comum da disciplina interior. Ambos podem ser estudados e praticados em conjunto, em templos e escolas, e, diz-se, os ambientes construídos e as pessoas reunidas para estes fins impregna-se de uma aura iluminada e benevolente. Lê-se, por exemplo, nos Evangelhos: «onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles» (Mt,18:20). O que o Evangelho não diz textualmente é algo que se manifesta de outras formas na tradição cristã e em várias outras tradições espirituais: só se pode compreender algo sobre a realidade -- seja ela espiritual ou não -- quando se realizou algum estudo em total isolamento, isto é, quando se construiu alguma disciplina interior, quando o indivíduo se acostumou a ouvir a própria voz e a reconhecê-la como tal e não como qualquer outra coisa.
Se você é daquelas pessoas que citei, que repetem lemas e que crêem que «yoga é união», responda: você sabe de onde veio esta frase? Sabe o que ele significa e sabe de que forma ele se realiza na prática? Você reconhece, sinceramente, sua própria voz quando você repete esta frase para outras pessoas ou, antes, tem a sensação de que é seu professor ou guru que estão falando através de você? Isto não é um apelo à originalidade, mas simplesmente um apelo à consciência. Não há o menor problema em repetir frases de outras pessoas -- se estas frases e estas pessoas realmente são boas, continue. O problema é repetir frases de outras pessoas achando que elas são suas. O problema torna-se ainda maior quando estas frases são repetidas sem tradução, isto é, de modo a que elas sirvam como regra literal, não como signo. É como ouvir «maçã» e trazer à mente a página de sua cartilha de pré-escola onde se lia «maçã» e onde estava estampado um desenho redondo e vermelho com uma ponta de cor escura em vez do próprio fruto de casca avermelhada, polpa amarela e sabor adocicado. Pode-se estudar um idioma estrangeiro assim, mas não se pode viver desta forma.
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