Desde que me tornei professor, um de meus esforços tem sido no sentido não de restaurar uma tradição, mas no sentido de restaurar os significados profundos do yoga. Alguns dizem que restaurar a tradição e restaurar os significados mais profundos do yoga são a mesma coisa, mas não são.
Para restaurar uma tradição é necessário estar formalmente inserido nela, o que implica ser iniciado, conhecer e compreender seus ritos, perpetuá-lo através desses ritos e iniciar outras pessoas nesta tradição. Em outras palavras, para restaurar uma tradição é necessário ser parte dessa tradição. Não é o meu caso.
Para restaurar os significados mais profundos do yoga é necessário primeiramente conhecer esses sentidos e integrá-los em sua vida. Em seguida, orientar outras pessoas para que reconheçam em suas próprias vidas os espaços interiores em que esses significados poderão florescer e render frutos e, então, orientá-las e ajudá-las no sentido de que esse florescimento e essa frutificação de fato ocorram.
Esta restauração não é tradicional em sentido estrito. Ela é, ao invés, atual -- no sentido de que, num primeiro momento, não existe a necessidade de ecoar ritos e ensinamentos tradicionais. Não há, portanto, compromisso com uma tradição. O compromisso é consigo mesmo, com o reconhecimento de si mesmo, com a identificação da constelação que constitui o que costumamos chamar de vida interior.
Pode-se argumentar neste ponto que o yoga é uma tradição e, portanto, por mais frágil e incipiente que seja sua ligação com o yoga, o compromisso com a tradição já existe. Este argumento traz uma série de ambigüidades. A primeira reside no fato de que, graças a mais de 100 anos de modernização, é praticamente impossível encontrar orientadores (e aulas, cursos, retiros, escolas etc.) que possam ser chamado de tradicionais. (Uma reação atual a este fato é a proliferação de pessoas ligadas ao yoga que se dedicam ao estudo de yoga-vedanta-e-sânscrito, como uma espécie de combo sem o qual o próprio estudo do yoga seria impossível. Este assunto fica para outro artigo.)
A segunda ambigüidade reside numa espécie de nominalismo, que valida como tradicional qualquer coisa que use o nome do yoga. Aqui na verdade não se trata de uma ambigüidade, mas de um erro mesmo: o yoga é uma tradição, mas nem tudo o que usa o nome do yoga é tradicional.
Dadas estas ambigüidades, minha sugestão é que o estudante firmemente decidido a estudar o yoga e invariavelmente perdido ao deparar-se com uma espécie de Torre de Babel do yoga faça-se as seguintes perguntas, anote suas respostas e mantenha essas respostas à mão, como uma espécie de guia para seu estudo e treinamento. Esta sugestão dirige-se especialmente a autodidatas, mas também poderá ser útil a quem já se decidiu pela prática e pelo estudo orientados ou mesmo a quem busca guiar-se para escolher um orientador.
1) O que é yoga?
Há inúmeras respostas para esta pergunta. Na minha opinião, a que melhor sintetiza todas essas respostas e que indica uma direção realmente útil para a prática e para o estudo é a de Vyasa, um dos primeiros comentaristas dos Yoga Sutras: yoga é samadhi. Naturalmente, compreender a afirmação de Vyasa implica compreender o que é o samadhi -- para isto, basta lembrar que o samadhi é uma prática, um dos oito estágios propostos por Patañjali.
Mais importante do que ter à mão uma resposta consagrada para esta primeira pergunta é ter uma resposta que realmente faça sentido para você, que seja clara, compreensível e que, como a resposta que eu mesmo adoto para mim, auxilie em seu desenvolvimento no yoga.
2) Yoga para quê? Qual seu objetivo?
Nesses 100 anos de modernização, as técnicas do yoga foram estudadas, modificadas e adaptadas para atender a inúmeras finalidades -- muitas delas têm relação não com os propósitos originais do yoga, mas com os propósitos do homem moderno (melhorar o desempenho físico, mental, emocional, sexual etc.). Quanto maior a modificação e a especialização, maior a distância entre o indivíduo e aqueles propósitos originais.
Embora os nomes sejam importantes, o mais importante nesta pergunta é saber para onde você está indo com aquilo que decidiu fazer.
Por exemplo: por algum tempo dediquei-me ao método chamado Iyengar Yoga acreditando que aquelas lições me ajudariam em meu processo de auto-estudo (svadhyaya) e na realização do samyama. Depois de alguma prática percebi que se tratava de um método de fisioterapia cujos resultados em svadhyaya e samyama seriam apenas corporais. Mesmo com esta constatação, continuei a participar das aulas do método Iyengar, aproveitei o que era bom (minha postura corporal melhorou substancialmente) e dispensei o que não era (não se tratava de um sistema de yoga).
3) O que ler? Devo ler as escrituras?
Esta pergunta é freqüente sobretudo entre autodidatas que acreditam que os livros podem apontar direções úteis para a prática e que a mente deve ser alimentada com bons conhecimentos. Esta crença está correta, mas às vezes ela é tomada de formas muito literais e equivocadas.
Quando comecei a estudar os shastras, as escrituras sagradas do yoga, dediquei tempo e esforço no sentido de resumir e compilar as técnicas que eram citadas nesses textos, na esperança de organizar uma espécie de manual técnico de yoga tradicional. Meu professor então me lembrou que uma escritura é literatura para iniciados, não para iniciantes.
Deveria eu abandonar a leitura e o estudo dos shastras? É claro que não. Porém, não seria sensato ler tais escrituras do mesmo modo que se lê «Luz da Ioga» ou «O Coração do Yoga», por exemplo, buscando conhecimentos que só se tornaram necessários a partir da modernização e da utilitarização do yoga. Fazendo isso eu estaria tentando compreender a tradição com base nos critérios modernos, como se fosse possível inverter a ordem dos fatos.
Em resumo, leia o que estiver disponível, mas priorize as escrituras e as use como base para compreender obras modernas, não o contrário. Por exemplo: em que medida um livro como «Yoga para Nervosos» pode ser inserido numa linha que conecta você a, suponhamos, Patañjali? Até que ponto a literatura atual a respeito do yoga ecoa aquilo que se apresenta nas escrituras?
4) O que fazer? Como começar?
O que está acima deve modular o que está abaixo. A regra vale para a literatura que trata do yoga e vale também para a prática do yoga. Portanto, medite, medite muito. Eventuais obstáculos serão resolvidos a partir desse norte: se o corpo reclama da imobilidade necessária à meditação, é possível amaciá-lo com a prática postural; se a mente insiste em discursar durante a meditação, pranayamas ajudarão a trazer o silêncio mental necessário; se a inquietação persiste mesmo com asanas e pranayamas, os mudrás poderão aprofundar o silêncio. Tudo que se faz, todas as técnicas devem ser realizadas à luz do samadhi.
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Em caso de dúvida, deixe um comentário.
Bom estudo do yoga para todos.
Comentários
Sacrifício.
A decisão de dedicar-se ao yoga, à prática do Silêncio Profundo, à vivência do Eu, exige sacrifício. Você deve organizar-se, planejar seu dia, investigar cada minuto das suas 24 horas para descartar aquilo que não contribua para seu estudo e para o cumprimento de suas obrigações como pai de família e como profissional. Lembre-se, ainda, de realizar as tarefas do dia-a-dia como uma sadhana. Cada gesto, cada ação, cada movimento é uma oportunidade de vivenciar o Eu, de observar.