O mundo bizarro do yoga modinha


Publicado originalmente no site O Indigesto

Semanas atrás Rodrigo Santoro esteve no programa do Faustão. O ator compartilhou com o público sua receita de bem-estar: yoga. Santoro não tinha a responsabilidade de fazer uma apresentação formal de uma tradição, mas seu depoimento fez com que algumas pessoas lembrassem que, antes do pilates, das terapias holísticas e dos studios assépticos e incensados da Vila Madalena, sempre houve uma tradição ensinando algo que o homem moderno insiste em desaprender. Para que você, leitor, possa valorizar a tradição do yoga como os mestres fazem, é necessário saber do que estamos falando.

Qualquer pessoa definirá o yoga como um sistema que combina técnicas corporais, respiratórias e mentais com a finalidade de obter bem-estar. Esta definição não está errada, ela apenas é uma simplificação construída a partir da exportação do yoga para plagas ocidentais e, portanto, de seu afastamento de seu contexto territorial, cultural e religioso original. Às vezes essa simplificação toma ares caricatos, como no caso daquele seu amigo engraçadinho que, quando você diz que pratica yoga, vira os olhos e começa a dizer «ooommm» com voz gutural. Sim, tem «ooommm» no yoga, mas se fosse só isso, seu amigo engraçadinho poderia ser considerado um mestre de yoga.

A ginástica que espiritualiza?

Um bom começo para compreender o yoga é compreender o que o yoga não é. Essa abordagem negativa pode não ser muito simpática, mas, como diz o ditado, antes de organizar a casa é necessário remover o lixo. E a verdade é que o universo do yoga hoje em dia está repleto de lixo. Uma das causas disto é o yoga moderno. Embora não haja uma definição precisa do que vem a ser a modernidade do yoga, podemos entender o yoga moderno como a tendência de utilizar o yoga para determinados fins que não estavam expressos na tradição, mesmo que isso possa trazer resultados positivos.

A origem da tradição do yoga também é incerta, mas a versão mais aceita diz que cerca de dois ou três séculos antes de Cristo o sábio Patañjali foi o primeiro a tratar do assunto de um modo objetivo para compilar um sistema mais ou menos prático e condensá-lo numa obra chamada Yoga Sutras. Quando falamos de yoga tradicional, por redundante que isso seja, estamos falando de um yoga que tem Patañjali como ascendente. 

A diferença entre o yoga moderno e o yoga tradicional é a mesma diferença que existe entre as canções (oi?) do Wesley Safadão e o Réquiem de Mozart. Se você aceita as canções do Wesley Safadão como obras musicais superiores, então como irá classificar o Réquiem de Mozart? O mesmo vale para o yoga: a visão moderna do yoga só pode ser yoga se o yoga tradicional não for.

Não sou yogi, mas...

Quando esse tema vem à tona, o isentão do yoga interrompe o vinyasa flow e pergunta: e daí? Essa discussão sobre yoga moderno versus yoga tradicional, essa rivalidade disfarçada de dualidade é muito bobinha, não? Por que não paramos com isso e vamos praticar mais e celebrar mais o yoga? Afinal, tudo é válido quando se trata de tornar as pessoas melhores, mais saudáveis, mais conscientes de si mesmas, certo? Tudo é válido quando se trata de divulgar o yoga. 

Primeiro, «pessoas melhores» é uma expressão bastante elástica — melhor em quê? Segundo, consta que, por exemplo, Hitler era uma pessoa muito saudável e que sua esposa, Eva Braun, era adepta da versão moderna do yoga e igualmente saudável — just saying... Terceiro, algumas psicopatologias podem tornar as pessoas assustadoramente conscientes de si mesmas. 

Em resumo: ainda que o bem, a saúde e a autoconsciência sejam associados à disciplina do yoga, estas qualidades são vagas demais para nos ajudar a definir e compreender o yoga. E, claro, divulgar o yoga per se não significa nada. 

No início dos anos 70 Caio Miranda divulgava o yoga no Brasil como técnica de relax (era o termo da moda na época em que o maior mal era o stress) para homens de negócios. Nos anos 80 B. K. S. Iyengar divulgava o yoga como técnica de fisioterapia. Neste início do séc. XXI temos visto Bikram Choudhury divulgando o yoga como modalidade esportiva competitiva. Divulgação, sobretudo quando ela assume a forma de marketing, pode demolir e construir culturas inteiras. Demolição, aliás, é uma palavra adequada quando se trata de compreender o que houve com a cultura tradicional do yoga.

Em 1966 B. K. S. Iyengar publicou sua principal obra, «Light on Yoga» (no Brasil foi publicada uma versão resumida deste livro com o título «A Luz da Ioga»). O livro traz a descrição detalhada de 202 posturas corporais. Muitas dessas posturas não podem e nem devem ser realizadas por pessoas que foram iniciadas no yoga tardiamente, isto é, depois dos cinco anos de idade. No início do livro há uma apresentação bastante razoável do que vem a ser o yoga. Porém, ali nos deparamos com as seguintes palavras de Iyengar:

My experience has led me to conclude that for an ordinary man or woman in any community of the world, the way to achieve a quiet mind is to work with determination on two of the eight stages of Yoga mentioned by Patañjali, namely, asana and pranayama.

Porque, afinal, é necessário ter régua para fazer yoga.

O que Iyengar diz nesse trecho despretensioso, que muitos admiradores de seu livro sequer devem ter notado, é o seguinte:
  1. O objetivo do yoga é obter paz de espírito.
  2. O sistema de Patañjali é constituído de oito partes.
  3. Duas dessas partes bastam para atingir esse objetivo.
  4. A meditação não é importante.
  5. E agora, com vocês, 202 posturas corporais para que vocês obtenham paz de espírito, mesmo que realizar algumas delas signifique passar onze dias sem poder andar com as próprias pernas e mesmo que nas entrelinhas estejamos enrolando vocês e afirmando que paz de espírito é algo que exige músculos firmes e flexíveis.

Mais, mais, mais — tudo para que o yoga seje menas

A visão do professor Iyengar é sem dúvida demolidora. Ainda que o professor Iyengar não tenha sido a principal influência para muitos professores e instrutores de yoga moderno nas últimas quatro décadas, fica evidente que os cinco itens acima condensam e expressam a essência do que o yoga tem sido ultimamente. Nestas quatro décadas temos visto: Ashtanga Vinyasa Yoga, Power Yoga e Vinyasa Flow Yoga, Swásthya Yôga, Yogaterapia, Yoga Pré-Natal, Yoga Hormonal, Yoga Restaurativo, Iyengar Yoga, Yoga Integral, Kundalini Yoga, Bikram Yoga e Hot Yoga. Seguindo direções ainda menos ortodoxas, há ainda Yoga Dance, Bambolê Yoga, Martial Yoga, Nude Yoga (sim, fazer yoga pelado), Acro Yoga, Yoga em duplas, Yoga Gravitacional, Dog Yoga, Baby Yoga, Yoga com Tambores, Yoga com Didgeridoo (aquela longa corneta dos aborígenes australianos) etc. A lista é interminável. Todos esses tipos de yoga não fazem nada além de ecoar de algum modo a desconstrução proposta pelo professor Iyengar, que, colocada em palavras mais atuais, pode ser resumida assim:
  1. O lance é ficar de boas.
  2. Existe uma tradição, mas e daí?
  3. Vamos fazer ginástica, porque isso vai deixar você de boas. Respire devagar.
  4. Meditar para quê?
  5. Temos ginástica para todos os gostos, bolsos e necessidades.
  6. Eu já lhe falei de ginástica? É para ficar de boas.
  7. Diga «ooommm» com voz gutural. Diga «namastê» em vez de «e aí, tudo bem?» Diga «gratidão» em vez de «obrigado!»

Diga «namastê» e tenha um fedor permanente de incenso.

Não é necessário ser um mestre indiano de yoga da Idade Média para perceber que isso não tem relação com a tradição do yoga. Em dois minutos no Google é possível descobrir o sentido original do yoga e qual o lugar do yoga moderno na linhagem que começa com Patañjali e se estende até os dias de hoje. A resposta é: não há lugar para o yoga moderno numa linhagem que inclua Patañjali. Tudo o que o yoga moderno tem feito é tabula rasa, a demolição dos cânones, a negação da tradição, a desconstrução de cada verso dos Yoga Sutras, a reinvenção da roda — tudo para apresentar-se como uma tradição milenar que começou anteontem com uma revelação que um ginasta espiritualizado de 27 anos de idade teve em um sonho em que o deus Shiva aparecia fazendo compras na 25 de Março.

Mas eu só quero ser feliz...


A esta altura talvez o leitor talvez esteja se perguntando: «O que eu tenho a ver com isso tudo? Eu só quero ficar bem comigo mesmo.» Eu também quero. Todo mundo quer isso. Mas se o seu professor de yoga o fez crer que yoga é bem-estar, ginástica e ficar de boas, tenho uma má notícia para você: você está sendo engabelado.

Anos atrás estive em São Paulo com um famoso professor em seu studio para uma aula. Com alguns livros publicados, longa trajetória de estudo, pesquisa e ensino, ele indiscutivelmente tem uma visão bastante razoável do que o yoga é. Sua aula? Controvérsias a respeito do fato de que o yoga indiano não é tão tradicional como se pensa, posturas exeqüíveis somente por pessoas com pelo menos dois anos de prática física intensa e, ao fim, o relaxamento, obrigatório para os moradores da versão brasileira da cidade que nunca dorme. Na conversa que sucedeu a prática, planos para o lançamento de um livro a respeito do resgate da tradição. Saí de lá me perguntando por que ele não começou o resgate da tradição exatamente naquela aula. 

Quase todos os professores são assim. Foram formados em cursos que pregavam o resgate da tradição, mas que nada acrescentavam ao que Iyengar propôs em 1966 e que jamais o negariam. Ao contrário, a atitude mais comum hoje em dia é encarar o yoga como um território a ser redesenhado a partir do zero, num processo que tem como único limite a criatividade do desenhista, no qual o «resgate da tradição» aparece apenas como slogan, espécie de ISO 9000 para fazer o que der na telha.

Patañjali vive

Se já sabemos o que o yoga não é, o que o yoga é afinal? Dizer que o yoga verdadeiro é o yoga tradicional é uma resposta tautológica, é o mesmo que dizer que a verdadeira literatura é Homero, Shakespeare, Dante, Cervantes, Camões, sem saber exatamente o que estas pessoas fizeram. 

A tradição define-se como a parcela do passado que conseguiu resistir ao tempo e que permanece viva até hoje como herança, legado e norte. Se não há essa ligação viva com o presente, temos peças de museu, não uma tradição verdadeira. O mesmo vale para o yoga.

Para os modernos a tradição é uma velha penteadeira de mogno que só serve para acumular poeira e vidros com restos de perfume vencido. A penteadeira pode permanecer ali onde sempre esteve, como forma de legitimar o studio asséptico e incensado da Vila Madalena e suas aulas de ginástica e psicobiodança, que os incautos aceitam como yoga. Para quem realmente compreende a importância da tradição, o yoga tradicional é uma fonte interminável de lições valiosas para realizar os objetivos propostos por Patañjali e também por mestres modernos — aqui, no sentido estritamente cronológico do termo — como Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj.

Senhoras e senhores, Ramana Maharshi. O prazer é todo seu.

Estes dois mestres tinham perfis que poucas pessoas associariam ao yoga. Ramana Maharshi possuía problemas posturais severos, com freqüência era indiferente às pessoas ao seu redor e morreu de câncer, pouco tempo depois de recusar uma cirurgia. Nisargadatta Maharaj, embora tivesse aparência mais saudável, tinha o costume de fumar, eventualmente comia carne, sua fala era qualquer coisa menos mansa, viveu numa favela de Mumbai, onde oferecia seus satsangs. Nos studios de yoga, Ramana e Nisargadatta são lembrados raramente, e apenas como mestres da filosofia do yoga, como se o yoga pudesse ser dividido entre aquilo que se pensa e aquilo que se faz. No entanto, são mestres genuínos, verdadeiros yogis — tendo em vista o sentido que Patañjali dá ao termo yoga. 

Se você quer conhecer o yoga e quer saber o que Patañjali chama de yoga, recomendo que leia os Yoga Sutras. O que posso adiantar é o seguinte:
  1. Se tudo que o ensinamento traz é o apreço pela tradição, o ensinamento é falso — é como, no ditado zen, olhar o dedo que aponta a lua, não a lua. O que um mestre faz — como Nisargadatta e Ramana faziam — não é perpetuar uma tradição e sim perpetuar um conhecimento. A tradição do yoga permanece viva através do conhecimento e da vivência do yoga, ações que têm pouco a ver com ritos tradicionais.
  2. Patañjali dedica três versos às assim chamadas «posturas do yoga». Isto é o oposto do que os professores modernos fazem e só isso já bastaria para dispensar tudo que os studios de yoga oferecem hoje em dia. O simples fato de utilizar o yoga para algo, de direcionar o yoga para um público específico (pessoas com depressão, obesos, executivos, atletas profissionais, grávidas etc.), mesmo com certo êxito, implica uma simplificação abominável de um sistema que não foi criado com fins utilitários.
  3. A cultura indiana e as tradições religiosas e espirituais daquela parte do mundo podem ajudar a compreender o yoga. Porém, mais uma vez, não se trata de perpetuar tradições e costumes, mas de tornar-se um yogi. O yogi não é aquele sujeito forte, magro e saudável que possui uma atitude zen diante dos problemas do mundo — seja lá o que for isso. O yogi é tão somente aquela pessoa que compreendeu o que ou quem ela é e que através dessa compreensão pode vivenciar a paz profunda — alguém que pode dizer com máxima sinceridade, como diz o Dom Quixote: eu sei quem sou. Até onde se sabe, nenhum ginasta de studio, nenhum terapeuta holístico e nenhum colecionador de dikshas compreendeu isso até hoje. 
Trata-se, repito, de sabermos quem somos. E o que somos? A genialidade de Patañjali não consiste em ter criado um sistema de yoga para todos, para o ser humano ideal, mas uma espécie de yoga para ornitorrincos, para seres cuja existência parece constituir um paradoxo — porque, afinal, o indivíduo real, único, é um paradoxo. Esse indivíduo não cabe numa sala de studio.

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