E o faniquito da semana entre os professores de yoga veio com esta notícia:
Pastores evangélicos no RS lutam para proibir a prática de Yoga nas escolas
Escândalo nas redes sociais! Vergonha! Ignorância! Fundamentalismo!
Se você também acha isso uma vergonha, eu tenho uma má notícia para você: os pastores estão certos -- mas não pelos motivos que você está imaginando.
Acompanhe meu raciocínio.
A proposta é de ensinar yoga em escolas municipais de uma cidade do interior do RS. O princípio da laicidade do Estado determina sua neutralidade nas questões religiosas. O ensino de yoga implica a transmissão de valores da cultura indiana, muitos deles ligados à religião hindu. Logo, ensinar o yoga implica ferir esse princípio.
Assunto encerrado. Ou quase. Os professores aos quais apresentei esse raciocínio trouxeram muitos argumentos interessantes:
1) Mas o yoga não é uma religião. Logo, o princípio de laicidade do Estado não será ferido por aulas de yoga para crianças em escolas públicas.
Não é bem assim. Se você pesquisar no Google «yoga para crianças», verá o seguinte:
- Todas as aulas incluem práticas de meditação
- Todas as aulas incluem histórias da tradição hindu
- Todas as aulas incluem referências aos deuses hindus (que inspiram os nomes de muitas posturas corporais)
(Eu já havia, inclusive, explicado que o yoga é uma religião.)
É evidente que estas atividades somadas configuram de alguma forma a transmissão da tradição religiosa da Índia. Mesmo que isso seja pequeno se comparado com a transmissão direta e objetiva dessa tradição, o fato de ser dirigido a crianças pressupõe uma fácil aceitação dos conteúdos transmitidos. Esta fácil aceitação decorre da natural incapacidade que as crianças têm de discernir o peso que cada lição tem dentro de um processo de aprendizado.
2) Mas as aulas serão apenas de ginástica, para melhorar a postura e a respiração das crianças, quase como uma educação física.
Como indiquei acima, é claro que não será assim. Mas suponhamos que seja essa a idéia: o yoga como um dos elementos das aulas de educação física.
Quem defende este argumento está dizendo que as aulas não serão de yoga coisa nenhuma e que, portanto, não haveria nenhuma diferença em chamar tais aulas de yoga, pilates, consciência corporal. Como, na realidade, as aulas propostas são de yoga e receberam o nome de yoga e não de outra coisa, isto é, se os outros nomes realmente não servem para o que está sendo proposto, é razoável crer que as aulas de yoga serão de yoga e que, portanto, elas levarão às crianças e jovens uma parte considerável do aparato filosófico e doutrinário da tradição indiana, como explicado no item anterior.
Em resumo, mesmo que o yoga nas últimas décadas tenha imergido na moda fitness, é evidente que as aulas de yoga para crianças não se resumirão a ginástica.
3) Pastores evangélicos não devem interferir no que será ensinado numa escola pública.
Este argumento foge da discussão acerca do conteúdo proposto (as aulas de yoga) e direciona seus canhões para os pastores. Como sabemos, no Brasil é fácil chamar evangélicos de «fundamentalistas», «conservadores», «ignorantes» e outros nomes ainda menos bonitos. A partir da suposição de que os pastores realmente são tudo isso, é fácil desmerecer qualquer iniciativa que eles tenham. Como a iniciativa deles tem como objetivo barrar uma proposta «do bem» -- afinal, quem pode ser contra aulas de yoga para crianças? --, é fácil juntar-se à turba e xingar muito nas redes sociais.
Aos professores de yoga que acham que os pastores não devem interferir nessa questão, outra má notícia: vocês também não deveriam interferir no que será ensinado numa escola pública -- mas não pelos motivos que você está imaginando.
Se esse dever não está claro, considere a seguinte hipótese: e se os pastores evangélicos, em vez de pedir o bloqueio das aulas de yoga em escolas públicas, pedissem a inclusão do ensino do cristianismo evangélico nos currículos escolares? Em outras palavras, eles concordariam com as aulas de yoga nas escolas, desde que houvesse também aulas de cristianismo evangélico, atividades nas quais as crianças seriam ensinadas sobre os dogmas e rituais dessa religião. Que tal?
É evidente que isso seria uma loucura pois se todas as religiões e tradições espirituais começassem a pedir espaço nos currículos escolares, em pouco tempo não haveria mais espaço para aulas de matemática, português, geografia etc. e as escolas seriam afastadas definitivamente de seus objetivos fundamentais e passariam a ser uma espécie de campo de batalha das religiões e tradições espirituais em busca de mais adeptos.
Na verdade, não é que os pastores evangélicos não devem interferir no que será ensinado numa escola pública. Boa parte do problema está nessa entidade chamada «escola pública», que implica que haja um sistema educacional regulado e gerenciado pelo governo, através de secretarias de educação e do Ministério da Educação. Nas últimas três décadas este sistema tem sido uma das causas do péssimo desempenho dos estudantes brasileiros nos principais testes internacionais de educação.
Em resumo, embora os pastores possam estar agindo com motivações equivocadas ou mal intencionadas, eles estão certos ao buscar proibir o ensino de yoga em escolas públicas -- por todos os motivos já demonstrados. Mas eles, assim como os professores de yoga, estão mirando nos alvos errados. O alvo correto é o fim da interferência estatal na educação de crianças e jovens. Este deveria ser o objetivo de qualquer pessoa preocupada com a qualidade da educação de crianças e jovens.
O que você acharia de uma escola para crianças e jovens baseada na cultura indiana, com aulas de yoga, com lições a respeito de yamas e niyamas, com práticas de meditação, com merendas baseadas em alimentos orgânicos? Bacana? Você acha que você deve ter a liberdade de escolher isso para você, para seus filhos e demais familiares? Pois é, eu também acho que sim. Só que isso exige um Estado que não interfira na educação e não impeça a criação de modelos educacionais diferentes, mas que também não apóie alguns modelos em detrimento de outros.
Isto significa o fim da escola pública? Certamente isso significaria o fim do modelo atual da escola pública: fortemente submissa a uma regulação centralizada, universalista e massificante. Afinal, quem realmente quer um sistema educacional centralizado, universalista e massificante? Você confia na educação básica fornecida pelo Estado?
Se todos tivéssemos essa liberdade, teríamos escolas indianas, evangélicas, budistas, agnósticas (cada uma voltada a necessidades e interesses específicos e aos valores que cada família quer transmitir aos seus filhos) e não teríamos pastores evangélicos pedindo mais proibições ao Estado (o que só reforça o poder estatal) e professores de yoga xingando muito na Internet por causa desse pedido. Enfim, teríamos paz e a educação certamente seria melhor.
Comentários
Partindo deste princípio (tolo). Então que deixem de ensinar judô (filosofia japonesa); kung fu (filosofia chinesa) e balet (filosofia francesa).
Ensinar filosofia e história de outros países NÃO FERE A LAICIDADE. Pois ninguém doutrina ninguém dentro do yoga ou dentro de outras filosofias.
Sou contra a escola sem partido. Como sou contra a escola sem filosofias.
As crianças vivenciam coisas nas escolas que sejam diferentes aos hábitos de dentro de casa. Isso que faz do cidadão um questionador.
#YogaEFilosofiaNaoEReligiao
– Os escritos que porventura não tenham indicação do autor são originalmente de minha autoria -- Christian Rocha / Templo do Yoga.
Que preguiça e que má vontade, hein?
***
Sobre seu comentário propriamente dito, vale aqui o que publiquei no Facebook em resposta ao seu comentário:
Clarissa,
Permita-me esclarecer alguns pontos confusos de seu comentário:
1) «Partindo deste princípio (tolo). Então que deixem de ensinar judô (filosofia japonesa); kung fu (filosofia chinesa) e balet (filosofia francesa).»
Primeiro, o princípio da laicidade do Estado não é tolo. É necessário para evitar abusos que o próprio Estado pode cometer -- e a história demonstra que o Estado cometeu vários.
Ballet é filosofia francesa? Não força, pelamor... Filosofia francesa é Lavelle, Montaigne, Pascal, Descartes, Comte, Malebranche... Isso é estudado em aulas de ballet?
A minúscula dose de filosofia oriental transmitida através das artes marciais raramente tem implicado a transmissão de ensinamentos de cunho religioso/espiritual e, portanto, não teria como ferir a laicidade do Estado.
Ademais, para que pudesse haver relação (positiva ou negativa) com a laicidade do Estado, precisaríamos estar falando só das escolas públicas. E quando há arte marcial em escolas públicas, elas são exclusivamente esportivas/competitivas, como o judô e o jiu-jitsu.
2) «Ensinar filosofia e história de outros países NÃO FERE A LAICIDADE.»
É claro que não fere. Não estamos falando de ensinar história e filosofia apenas, mas de inserir esses conhecimentos em contextos religiosos/espirituais, como ocorre quando se ensina história e filosofia indiana em aulas de yoga.
3) «Pois ninguém doutrina ninguém dentro do yoga ou dentro de outras filosofias.»
É claro que existe doutrinação. E haverá sempre, principalmente quando se tratar de conteúdos de teor religioso/espiritual (além dos óbvios casos dos conteúdos políticos e ideológicos). E eu não considero isso errado, só acho que isso não deve ser permitido em escolas públicas. Os meios criados e mantidos pelo Estado não devem ser utilizados para esse fim.
4) «Sou contra a escola sem partido. Como sou contra a escola sem filosofias. As crianças vivenciam coisas nas escolas que sejam diferentes aos hábitos de dentro de casa. Isso que faz do cidadão um questionador.»
A discussão não era essa, mas é bom saber que você é favorável à escola COM PARTIDO. Eu posso lhe recomendar pelo menos uma dúzia de leituras e palestras que demonstram que essa «educação para a cidadania» foi uma das coisas mais prejudiciais já inventadas por «educadores». Se quiser insistir nesse tema, estou à disposição.
5) #YogaEFilosofiaNaoEReligiao
Leia e refute: http://www.templodoyoga.org/2012/01/yoga-e-religiao.html
Hashtag não é argumento.
"Sobre a autoria do texto, veja o «Sobre» deste site:
– Os escritos que porventura não tenham indicação do autor são originalmente de minha autoria -- Christian Rocha / Templo do Yoga.
Que preguiça e que má vontade, hein?" (CRITICAL HIT)
só pra terminar então vou deixar uma hashtag
#gentequeusahashtagnoblogspotéoque?
PS.:vou colocar aquilo que disse no face em um novo comentário aqui. Nesse aqui a pomba já passou no tabuleiro.
Sim, de fato, nisto temos de colocar em foco o objetivo supremo do yoga, assim como do pensamento Hindu (incluindo Budismo e Jainismo). Objetivo esse que visa a liberaçao suprema ultima o Moksha, Kaivalyam, Nirvana. Esse ideal esta baseado na crença da transmigração de alma, sucessivas encarnações, samsara etc. Logo tudo isso se refere ao contexto religioso, ao sistema de crença, à fé.
"A separação do Estado e de qualquer igreja não significa luta contra a religião, mas sim, simplesmente, vocação para a universalidade, e ao que é comum a todos os homens para lá das suas diferenças."
http://www.laicidade.org/documentacao/textos-criticos-tematicos-e-de-reflexao/a-laicidade-como-principio-fundamental/
Você disse:
«todo professor tem que ter o direito de se manifestar, ele precisa sim opinar, caso contrário, ele vai sentar lá na frente pra ler a Wikipédia pros alunos»
Este tipo de afirmação demonstra desconhecimento sobre o papel do professor numa sala de aula e, sobretudo, sobre os limites e responsabilidades da atuação profissional.
O professor é livre para emitir opiniões fora da sala de aula. Dentro da sala de aula é obrigação profissional limitar-se aos conteúdos disciplinares específicos -- no mínimo por respeito às expectativas e necessidades dos alunos, que lhe pagam o salário e que dependem do acesso a esses conteúdos para seguir adiante na própria formação.
Só para citar um exemplo: quando eu era estudante universitário, professores meus fizeram pregação política dentro de sala de aula. Eram professores de disciplinas que nada tinham a ver com a conjuntura política do momento. A pregação política obviamente não foi um «convite para o debate» -- o que um moleque de 18 ou 19 anos poderia discutir com um doutor de seus mais de 40 anos? --, eram simples panfletagem. Um desses professores chegou a pedir explicitamente votos para um determinado candidato. Absurdo? Não se imaginarmos que, como você afirmou, um professor tem todo o direito de expressar suas opiniões em sala de aula.
Por isso, com o pretexto de discutir e exercitar o senso crítico e com o argumento de que os alunos são livres para questionar e argumentar, muitos professores usam a sala de aula como palanque. É muita canalhice.
Se aplicarmos o seu raciocínio ao ambiente educativo e instrucional do yoga, o absurdo ficará ainda mais patente.
Sobre laicismo: o que se defende hoje em dia consiste em atacar a religião da maioria. Colocar a religião que fundou este país em pé de igualdade com religiões que nunca tiveram qualquer relação com a constituição social e cultural do Brasil é um enorme equívoco, para dizer o mínimo.
Se todas as religiões são iguais e merecem ser incorporadas -- esta é a essência do laicismo --, o satanismo, o druidismo e o ateísmo devem ser ensinados em pé de igualdade com religiões como o budismo e o cristianismo. Que tal?
*
Aliás, caso queira continuar comentando neste blog, por favor identifique-se. Seus comentários serão bem-vindos, desde que devidamente identificados.
Isso é uma visão totalmente avessa a tradição.
Uma tradição, tem um ponto de vista específico, que é sua base, e se desenvolve dentro desta visão, logo, como diz o texto acima, Yōga não é exercício físico, e os "professores" de
Yōga não são professores de Yōga, não pertencem a uma tradição, fizeram cursos de formação, até mesmo na Índia (como se na Índia, todas as pessoas fossem santas, e isso garante um ensino tradicional).
É preciso passar pelos processos tradicionais, precisa pertencer a uma linhagem Parampará, existem ensinamentos que são passados especificamente na relação entre o guru e seu estudante... E isso acontece em qualquer tradição, logo, Yōga tem sim um viés, um ponto de vista tradicional e defende valores, que não são simples formas arquetípicas, mas como saber disso se existe um mercado de consumo?
Que eu saiba, no Brasil existem apenas 02 hatayogis. O restante, foram formados por cursos de formação em uma ginástica indiana moderna, com alto cunho espiritualizado, principalmente pelo Vedanta (E a maioria das pessoas não está realmente consciente disso) e isso não é hatayōga.
Infelizmente vivemos em um momento onde existe muita informação e pouco conhecimento.
Agradeço muito ao autor do texto, por esta possibilidade de reflexão.