«Eu não consigo meditar».
Para a maioria das
pessoas esta frase soa como uma confissão de falta de força de vontade. Para
muitos professores de meditação soa como um desafio, como se a partir dela o
ouvinte passasse a ter a obrigação de demonstrar, com argumentos retóricos ou
sólidos e exemplos práticos, não apenas a possibilidade universal de meditar,
como também o oceano de conquistas e realizações que podem surgir com a simples
decisão de meditar em duas ou três sessões breves por semana.
Em outras
palavras, «eu não consigo meditar» é a frase-gatilho favorita dos «mercadores
de paz e luz» — expressão que usarei aqui para referir-me àquela gente linda e
calminha que bebe pelo menos três litros de água mineral por dia, diz
«gratidão» em vez de «obrigado» e que, afinal, precisa ensinar os outros a ter
(isto é, como adquirir) paz e luz.
Um dos recursos mais curiosos utilizados por
esses mercadores é apresentar a meditação como uma espécie de laxante: à
decisão da pessoa de tomar o medicamento segue-se a conseqüência incontornável
e quase imediata de livrar-se de inúmeras coisas que pareciam eternamente
presas dentro dela.
Não é coincidência que a meditação seja descrita às vezes —
mais por uma simplificação didática do que por uma burrice inata de muitos
instrutores (não que isso não exista) — como um processo de esvaziamento
da mente. A analogia com o processo de esvaziar os intestinos, verificar os
dejetos flutuantes (ou não) e dar a descarga, por escatológica que possa
parecer, corresponde às descrições usualmente utilizadas pelos instrutores de
meditação: é necessário esvaziar-se de pensamentos e emoções negativas para
preencher-se de paz e luz.
O que nenhum instrutor explica é que todas
essas expressões são figuras de linguagem. A mente não se esvazia porque a
natureza da mente não é encher-se de nada; não se trata de um recipiente. Não é
possível livrar-se de pensamentos negativos porque você nunca esteve algemado a
eles; não se trata de uma ligação física inquebrável. Ninguém se enche de paz e
luz porque, mesmo que identifiquemos nestas palavras qualidades que possamos obter
de algum modo, elas não podem ser circunscritas, muito menos medidas.
Outra coisa que nenhum instrutor de meditação
explica é que a simples existência de «instrutores de meditação» constitui um
gigantesco paradoxo. Se você só medita quando um grupo se reúne para meditação
(para «sentir a energia coletiva») sob orientação de um instrutor de voz grave
e cristalina que o conduz com slogans motivacionais («inspire a paz, exale o amor»),
então, meu chapa, já era. Meditação guiada é algo semelhante ao que o boiadeiro
faz com o boi que tem uma argola no nariz: às vezes o bicho é levado para um
pasto verdejante, outras vezes para o abatedouro. Se você acha que a comparação
é exagerada, me acompanhe:
1) se o que se pretende realizar em cursos,
retiros, aulas e grupos de meditação é meditação
2) e se a meditação consiste, entre outras
coisas, em fechar os olhos e vivenciar silêncio e isolamento em doses
suficientes para que você consiga observar o fluxo natural dos seus próprios
pensamentos
3) então não há sentido em ter como ideal
de meditação uma prática que dependa de uma reunião especial em locais
especiais com pessoas especiais guiadas por uma pessoa especial
Uma das provas de que este raciocínio está
correto é a grande quantidade de pessoas que participam de retiros e cursos de
meditação e que nas duas ou três semanas que se sucedem declaram-se
profundamente transformadas pelas experiências que tiveram nesses eventos
(reuniões, locais, pessoas e instrutores especiais), mas que, passadas essas
duas ou três semanas, voltam aos mesmos hábitos (interiores e exteriores) que
possuíam antes daqueles eventos. Isto ocorre pelos motivos que apontei acima: a
lição essencial de retiros e cursos de meditação é de que retiros e cursos de
meditação são necessários para meditar corretamente. Não, não são. Ajudam, mas
não são necessários. Tornar a meditação algo muito especial a ser realizado em
condições especiais e em momentos especiais contradiz a própria definição de
meditação.
Afinal, o que é necessário para meditar
corretamente? Em primeiro lugar, a disposição para passar um tempo consigo
mesmo, o que significa ficar sozinho e em silêncio. Assustador? Para muitas
pessoas é. Esta disposição exclui a meditação realizada em grupos, com incenso,
música, a condução de um instrutor, enfim, com toda a parafernália que os
mercadores de paz e luz consideram essenciais para meditar. Questionados sobre
isso, eles dirão que essas coisas são essenciais apenas para os iniciantes, o
que, é claro, implica outra bobagem: a de que existiria algo que se possa
chamar de «meditação avançada», o que não seria muito diferente da divisão dos
grupos de meditação em faixas coloridas, como ocorre em artes marciais.
***
Se é meio bobo definir e compreender a
meditação a partir de pressupostos estabelecidos por pessoas que entendem essa
prática como algo que pode ser dividido em categorias e comercializado, o que
dizer da tendência de encarar a meditação como uma tecnologia, um sistema
disciplinar com finalidades utilitárias? Tenho certeza de que o leitor já não
se surpreende mais quando se depara com divulgações de cursos e retiros de
meditação que têm como propósito melhorar seu desempenho nos estudos, nos
negócios, nos relacionamentos ou melhorar sua saúde física e mental. Seria
surpreendente encontrar um simples encontro com orientações elementares de
meditação e sem menções às suas conseqüências práticas.
Ainda que esses propósitos às vezes sejam a
isca para atrair pessoas para orientações, digamos, mais tradicionais (um
argumento recorrente), nesses casos o peixe subirá ao convés machucado: a
pessoa que vem a um encontro de meditação movida pela perspectiva de estudar
melhor e passar num concurso público (um tipo de divulgação bastante popular
ultimamente) na prática se assemelha a uma pessoa que acha que o primeiro passo
para realizar uma viagem é rasgar a passagem que ela acabou de comprar.
***
É bom esclarecer: eu estaria enganando o
leitor se dissesse que a meditação não proporciona benefícios físicos e
mentais. Minha experiência e as experiências que muitos de meus alunos tiveram
com a meditação confirmam isso. Algumas pesquisas também têm confirmado a
eficiência da meditação na redução de níveis de stress e no controle da pressão
arterial. Todas estas coisas são obviamente boas, mas são efeitos de uma busca
que não se limita a utilizar a meditação como terapia.
Se, como assinalei antes, a meditação
consiste em observar o fluxo natural dos seus próprios pensamentos, a fixação
do pensamento numa meta específica — por exemplo, «quero desenvolver autoconfiança»
— implica um alto grau de artificialidade e, portanto, a interrupção do fluxo
natural dos pensamentos. Em outras palavras, é como se, para observar cardumes de
barracudas em mar aberto, você decidisse criar peixes beta num aquário: por
maior que seja seu aquário e por mais peixes beta que você tenha, aquilo nunca
passará de uma caixa de vidro com peixinhos comprados em loja.
A verdade é que a meditação não serve para
nada simplesmente porque essa prática não pode servir para nada. Não me refiro àquele
provérbio oriental que diz que o caminho é mais importante que a meta etc.
Refiro-me a uma prática que se situa num plano em que não há sentido em falar
de caminho, direção ou meta, em que a existência e a identificação destes
elementos são efeitos colaterais, não a razão da prática.
Monges tibetanos comparam a meditação com
um descanso ao final de um exaustivo dia de trabalho — você simplesmente
permanece ali, ainda entorpecido pelo cansaço, mas consciente de que suas
funções básicas se mantêm: a respiração, a visão, a audição, os batimentos
cardíacos etc. Numa situação dessas você não pensa «vou descansar» ou «estou
descansando». Você apenas permanece quieto, em silêncio e imóvel. A meditação
não é muito mais do que isso.
Expressões como «estar presente» e
«praticar o silêncio», por esquisitas que possam parecer, constituem formas
interessantes de evitar termos utilitários para explicar a prática de
meditação. São expressões paradoxais, mas verdadeiras: a meditação começa a
funcionar quando você percebe a idéia de que a meditação serve para algo além
de meditar apenas como mais uma das idéias a serem observadas.
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