«Você já é a felicidade que você busca»


Uma das coisas que sempre me impressionaram nos satsangs ocidentais é a freqüência com que se diz «você já é a felicidade que você busca». Esta frase tem outras versões, todas com o mesmo sentido: «você já é o Buda», «você já é iluminado», «você já é Shiva», «você já é o Um», «você já é a Presença».

Pensa um pouco: se já somos a felicidade que buscamos, nenhuma disciplina, nenhuma tradição, nenhum mestre e nenhuma sadhana são necessários. Logo, esqueça essas coisas, viva sua vida e seja feliz.

Se essas frases fizessem algum sentido para as pessoas a quem se destinam, se ressoassem alguma realidade já contida no interior dessas pessoas, a cada vez que fossem proferidas dúzias de espectadores de satsangs se levantariam e iriam embora para cuidar das próprias vidas. Mas não. Em vez disso, continuam ouvindo uma pessoa que se apresenta como mestre, guru, professor ou instrutor insinuar que mestres, gurus, professores ou instrutores não são necessários, continuam participando de retiros, cursos e aulas e, principalmente, continuam gastando muito dinheiro com essas coisas.

O fato é que essas frases só fazem sentido como slogans; são usadas não porque são corretas, não porque realmente calam fundo, mas por causa de seus efeitos emocionais e comerciais. São usadas como ganchos para todo tipo de comércio baseado no yoga. São usadas como pó de pirlimpimpim para que o orador assuma imediatamente uma aura de humildade e generosidade:

«Você já é a felicidade que você busca. Nenhum mestre é necessário. Basta abrir os olhos.»
«Nossa, que lição de simplicidade! Que mestre humilde e generoso! Vou segui-lo pelo resto da vida!»

Os «satsangadores» mais famosos da atualidade usam frases desse tipo, imersas propositalmente num emaranhado de estimulação contraditória. Num momento passam a mão na cabeça do discípulo e recebem bem todas as manifestações de idolatria; noutro, afirmam que qualquer um pode despertar, soltando nas entrelinhas a idéia de que eles não são necessários.

Uma das chaves da estimulação contraditória consiste em criar um estado de confusão mental que só pode ser atenuado com a ajuda de quem a causou. Com efeito, esses «satsangadores» conseguem assim intensificar o apego e a dependência de seus discípulos e ampliar seu secto.

Alguns dirão que não há nada errado nisso.

«Se, afinal, ele ensina o que é correto e conduz as pessoas na melhor direção possível, qual o problema?»

O problema, caro gafanhoto, é que slogans e desonestidade no máximo servem para elevar o saldo bancário de quem mistura estas coisas com as questões do espírito e para construir hordas de dependentes emocionais.

A solução disso? Comece perguntando sinceramente a você mesmo qual a solução disso. Preserve o restinho de autodidatismo que ainda há em você e assuma responsabilidades. O resto é conseqüência.

***
Antítese / Plot twist

Para cada lorota contada por um pagador de boletos travestido de professor de yoga, de «facilitador» (esse nome é ótimo) de retiro ou de terapeuta tântrico há pelo menos uma verdade escondida.

Digo isso porque por definição um enganador não é dotado da coragem e sobretudo da capacidade intelectual necessárias para criar mentiras verossímeis. Deste modo, a forma mais fácil de obter um discurso verossímil é começar apoiado na verdade.

Quando o protótipo de 171 diz que «você já é a felicidade que você busca», tenha certeza de que alguma verdade há nessa arapuca. A verdade é a seguinte: sim, você já é a felicidade que você busca. Só que como o sujeito é meio burrinho (todo estelionatário é meio burrinho, depois eu disserto sobre esta idéia, por enquanto apenas assimile), ele usa essa afirmação para vender DVDs e tingir-se de tintas modestas e humildes, como expliquei acima, e aos poucos a verdade contida na afirmação original é soterrada por toneladas de DVDs e por litros de humildade fingida. TEM QUE SER ASSIM, senão você realmente perceberia que você já é a felicidade que você busca e então, oras bolas, você veria que DVDs e retiros não servem para nada.

Mas, sim, você já é a felicidade que você busca.

Donde, então, a necessidade de dedicar-se ao que quer que seja? Você precisa realizar 108 saudações ao sol? Você precisa levantar-se às 4:30 da manhã para meditar? Você precisa dominar «posturas desafiadoras»? (depois eu disserto sobre esta expressão, por enquanto apenas assimile) A rigor, a resposta a todas estas perguntas é «não». Só que sua vida não tem essa de «a rigor».

Consideremos que:

1) O fato de uma coisa não ser necessária não significa que essa coisa não seja boa. Bolo de avó, por exemplo.

2) O objetivo das técnicas de yoga não é tornar-se feliz, melhorar a saúde ou aumentar a auto-estima, mas perceber-se e compreender-se claramente.

Se somarmos estas duas coisas -- que, aliás, raramente são ditas nos «studios» de yoga -- fica mais fácil situar aquela frase-gatilho do início dentro de um sistema disciplinar que em geral é complexo o suficiente para alimentar discussões e famílias.

Resumindo: sim, você já é a felicidade que você busca, NO ENTANTO precisa de um sistema disciplinar não para que você se torne o que você já é, mas -- na linguagem usualmente utilizada nos meios tradicionais -- para remover os véus que o tornam INCAPAZ DE VER sua condição de ser pleno.

Em outras palavras, a experiência da elevação espiritual é só isso: elevação espiritual, muito similar à experiência de subir ao topo de uma montanha e subitamente deparar-se com aquela visão espetacular que permite, entre outras coisas, ver a casinha onde você mora e entender rapidamente como a sua casinha e todas as outras coisas estão conectadas.

Que tanta gente continue sendo um fosso de ruindade e confusão mesmo depois de passar por experiências de genuína elevação espiritual -- aliás, como explica Jack Kornfield em seu interessantíssimo «Depois do êxtase, lave a roupa suja» -- é outra prova de que a disciplina é importante, porque as algemas corporais e mentais duram enquanto o corpo e a mente durarem. E se a preocupação for de ordem moral, lembre-se: até hoje ninguém conseguiu fazer merda enquanto meditava.

Comentários

Daniel De Nardi disse…
Parabéns pela reflexão Christian! Excelente texto. NO fundo há uma confusão de conceitos, essa idéia de você já é pode ser facilmente conduzida ao hedonismo. Concordo totalmente nesta questão de que é como retirar um véu!.
Muito bom!
Gabriel Almeida disse…
Fazia tempo que não vinha até aqui ler seus artigos, caro Christian. Que descuido da minha parte. Continua essencial!
Christian Rocha disse…
Obrigado, Gabriel! Seja sempre bem-vindo!
Unknown disse…
Fantástica explanação! Desconstruir toda essa imagem de persona espiritual nirvânica que os gurus e professores "iluminados" trazem. Você está apontando a luz da razâo que apresenta claramente a lavagem cerebral em torno de tradições transformadas em consumismos libertários piscodélicos.
Benedixt disse…
mto bom, bora meditar! sozinho, quieto, parado e respirante.