A biblioteca do praticante de yoga: esclarecendo 5 dúvidas freqüentes


Este texto tem como objetivo apresentar algumas recomendações de leitura e esclarecer algumas dúvidas comuns aos praticantes de yoga quando se trata de escolher livros. Vamos a elas:


1) O que o praticante de yoga deve ler?

Chamam-se obras fundamentais, como o nome sugere, aquelas que fundam uma corrente de pensamento, uma tradição, uma disciplina, uma ciência etc. Este é o caso do que se convencionou chamar de «clássicos». Na literatura universal este é o caso das obras de Homero, Dante, Camões, Shakespeare e Cervantes, entre outros.

No yoga, as obras fundamentais são aquelas que estabelecem o yoga como a tradição que se perpetuou até os dias de hoje. Enquadram-se nesta definição

  1. os Yoga Sutras, de Patañjali, 
  2. os Upanishads do yoga, 
  3. o Bhagavad Gita, 
  4. as escrituras produzidas por mestres nathas, como Hathayoga Pradipika, Gheranda Samhita, Shiva Sutra, Goraksha Shataka e Goraksha Paddhati, Gorakh Bodha etc.

O que estas obras têm em comum? Primeiro, são antigas, foram escritas muitos séculos atrás. Claro que a idade em si não quer dizer muita coisa, mas o fato de serem antigas e terem chegado até nossos dias, século XXI, significa que elas possuem a força necessária para se perpetuar. Em outras palavras, elas estabelecem e reafirmam verdades importantes quando se trata de compreender o yoga. São estas obras que devem ser lidas.


2) A leitura é fundamental para o praticante de yoga?

Sim e não.

Se você dispõe de um guru para orientá-lo, ele é o seu livro, ele é tudo de que você precisa. Leia o que ele determinar -- se ele determinar que é necessário ler algo.

Ademais, se o yoga é meditação, o fundamento de sua prática e de seu estudo é a meditação. Nenhum livro ensina o que a meditação ensina. (Doravante, onde aparecer escrito «yoga», leia-se «meditação» e vice-versa.)

Mas digamos que você quer ler algo como forma de nutrir o intelecto e encontrar dicas que podem auxiliá-lo em sua prática de yoga. Neste caso, as únicas leituras necessárias são aquelas mencionadas no item 1: aquelas que fundam o yoga, que o estabelecem como uma tradição, que o reafirmam como meditação, como nirodha, como laya, como samyama.


3) Certo, devo ler as obras antigas. Mas e as obras modernas, mais recentes, não devem ser lidas?

Primeiro, vamos estabelecer o seguinte: obras modernas de yoga são aquelas escritas e publicadas a partir de meados do séc. XIX até os dias de hoje.

O que houve a partir de meados do séc. XIX, que mudou drasticamente o modo como o yoga era compreendido e ensinado? A explicação é longa, mas o resumo é este: a ascensão da ginástica (de ascendência militar) e do higienismo (por influência britânica). Os cuidados com a saúde física e a perfeição corporal estabeleceram-se como metas importantes inclusive para praticantes de yoga. Isto explica o advento da yogaterapia (o uso de técnicas do hathayoga como meio de curar doenças) e do vinyasa, que foi o ápice da «ginasticalização» do hathayoga.

Praticamente todos os livros escritos a partir dessa época, assim como os livros mais famosos atualmente têm como pressuposto a idéia de que o principal objetivo do yoga é o bem-estar físico e mental. Isto vale para os livros de quase todos os autores do séc. XX:

  1. Hermógenes
  2. B. K. S. Iyengar
  3. T. Krishnamacharya
  4. Pattabhi Jois
  5. Selvarajan Yesudian
  6. T. K. V. Desikachar
  7. Satyananda Saraswati
  8. De Rose (pai e filho)
  9. Dharma Mittra
    etc.

Minha recomendação é que você leia as obras destes autores depois de ler, entender e assimilar as obras dos autores antigos -- não antes.

Por exemplo: se você ler «Yoga para Nervosos» antes de ler os Yoga Sutras, inevitavelmente acreditará que o objetivo do yoga é aliviar o stress e começará a misturar efeitos colaterais e objetivos. Em pouco tempo estará pensando como aquele famoso instrutor norte-americano que disse que «quem não consegue fazer Utthita Hasta Padangustasana não tem condições de ser um yogi» -- uma idéia obviamente sem sentido.

Outro exemplo especialmente didático: nos Yoga Sutras, Patañjali descreve um sistema de oito passos para o praticante de yoga. Em 1966 o instrutor indiano B. K. S. Iyengar publica «Light on Yoga», em cujo prefácio encontramos o seguinte:
Minha experiência levou-me a concluir que para um homem ou mulher comuns, em qualquer comunidade do mundo, a maneira de atingir a paz de espírito é trabalhar com determinação em dois dos oito estágios da ioga citados por Patañjali, a saber, asana e pranayama.
Há dois problemas neste parágrafo. O primeiro é insinuar que yoga e «paz de espírito» são a mesma coisa -- uma evidente confusão entre a disciplina e o efeito da disciplina. O segundo é propor a redução do yoga a um sistema binário, como se sem estes seis angas o yoga pudesse continuar sendo yoga.

«Light on Yoga» é uma obra que nasce sob a atmosfera New Age. É um livro de yoga para ocidentais interessados nos benefícios do yoga para a saúde. Trata-se de um livro que propõe a desconstrução de uma tradição, como uma síntese de várias tendências que vinham sendo desenvolvidas desde o início do séc. XX -- ginástica, fisiculturismo, fisioterapia, higienismo.

Em resumo, se você concorda com a visão que Iyengar e Hermógenes têm do yoga, inevitavelmente discordará de Patañjali e vice-versa. Tertium non datur.


4) Ok, mas eu busco livros apenas para poder praticar yoga em casa. Não tenho acesso a um guru e as obras antigas que você recomenda são de difícil compreensão.

É verdade. A maioria dos textos antigos foi escrita em uma linguagem que é pouco acessível para pessoas não-iniciadas no yoga, que nunca tiveram a orientação de um guru. Mesmo assim, algo é possível compreender e assimilar a partir da leitura destas obras.

Por exemplo: no verso II,46 dos Yoga Sutras, Patañjali define asanas da seguinte forma: «o assento (asana) deve ser fácil/confortável e estável/imóvel/firme». Mesmo o leitor iniciante não deve ter dificuldades para compreender duas coisas a partir deste verso:

  1. O que define um asana não é o posicionamento da coluna vertebral e de outras partes do corpo, mas certas qualidades sem as quais não é possível levar a prática de yoga adiante
  2. O fato de não haver a descrição de posturas específicas deixa claro que o domínio de dezenas ou centenas de posturas corporais é algo de pouca ou nenhuma importância. 

Poderíamos mencionar um terceiro ponto aqui: mais nada é dito sobre asanas nos Yoga Sutras além do que é dito em II,46 e em II,47, o que contrasta enormemente com os livros modernos, que dedicam páginas e mais páginas à descrição técnica de dezenas, às vezes centenas de posturas corporais.

A partir disso o leitor iniciante pode concluir sem muitas dificuldades que a visão tradicional e a visão moderna a respeito dos asanas não são apenas diferentes, elas são opostas.

Outro ponto importante nesta questão 4 refere-se ao «praticar em casa». Aqui as coisas realmente podem ficar complicadas. Os livros antigos têm os conteúdos corretos mas não têm o objetivo de ensinar yoga e de auxiliar na prática sem o guru. Os livros modernos não têm os conteúdos corretos mas têm o objetivo de ensinar yoga (ou, pelo menos, de ensinar o yoga conforme a visão moderna) e auxiliar na prática sem o guru. O que fazer?

Quanto a isto não tenho receitas de bolo. Posso recomendar o que eu fiz nos períodos em que não tive acesso a um orientador: dedicar-se intensamente à leitura das obras clássicas e eventualmente consultar obras modernas com o cuidado de identificar os conteúdos que não contradizem as obras clássicas. É uma tarefa difícil, mas, afinal, é sempre difícil estudar e praticar sem um orientador ou guru.


5) Vi aqui em seu site que há um acervo de obras de yoga. Você o dividiu em quatro grupos diferentes. Por que? 

(Ok, esta não é uma dúvida freqüente e pode ser específica apenas para quem visita este site, mas talvez ajude a entender os diversos tipos de «livros de yoga» com que o praticante-leitor pode se deparar...)

Os grupos são os seguintes: yoga e hathayoga, pré-hathayoga, ginástica indiana (e criações modernas) e outros.

No grupo Yoga e Hathayoga estão listadas obras clássicas, como os Yoga Sutras, o Bhagavad Gita e o Hatha Yoga Pradipika, entre outras. São as obras fundamentais às quais me referi no início deste texto.

No grupo Pré-hathayoga estão listadas obras que, embora não sejam tradicionais, trazem informações de técnicas que, como o nome sugere, podem ser usadas como preparação para o hathayoga.

No grupo Ginástica indiana e criações modernas inspiradas no hathayoga estão listadas obras escritas ao longo do séc. XX, algumas delas muito conhecidas por professores e praticantes da atualidade. Ainda que estas obras contenham alguns pontos interessantes, baseiam-se na visão particular de seus respectivos autores e, portanto, não têm compromisso com as obras clássicas ou com a tradição e por isso não podem ser consideradas obras de yoga. Algumas destas obras são visivelmente manuais de ginástica, como é o caso do best-seller «Light on Yoga» e «608 Yoga Poses», e é neste sentido que devem ser encaradas.

Embora não sejam obras de yoga, foram disponibilizadas pelos motivos apontados ao longo deste texto e porque podem ser úteis aos praticantes mais interessados nos aspectos mais superficiais e mais técnicos da prática do hathayoga. Por exemplo, «Yoga Body», de Mark Singleton, descreve a «ginasticalização» do yoga a partir de meados do séc. XIX e será de interesse a todos que querem entender esse processo e entender a origem dos «estilos de yoga» mais populares hoje em dia.

No grupo Outros há livros de vários tipos. Alguns têm relação com os propósitos mais fundamentais do yoga, como as obras de Nisargadatta Maharaj e Ramana Maharshi. Outros livros disponibilizados nesse grupo apresentam sistemas de ginástica ou bem-estar sem relação direta com o yoga, mas que se baseiam em elementos disciplinares comuns no Oriente, como é o caso de «The Eye of Revelation».

*

É isso. Caso haja mais dúvidas, deixe um comentário.

Boas leituras a todos.

Comentários

Unknown disse…
Venho aprendendo muito com seu conteúdo, muito obrigado!