Sim, vamos, mas vamos estudar também nutrição, fisiologia, climatologia, microeconomia, bioquímica, psicologia... Que tal? Se anatomia é fundamental para o praticante de yoga, todas estas ciências também são, certo?
Vamos às explicações.
Anatomia é tão necessário para o praticante de yoga quanto qualquer outra ciência moderna. Numa escala de 0 a 100, a importância das ciências modernas para o praticante de yoga é 0 (zero). Em outras palavras, não é necessário estudar anatomia para praticar yoga.
Mas ter algum conhecimento de anatomia não ajuda na realização das posturas corporais? Claro que ajuda, mas desde quando praticar yoga consiste em realizar posturas corporais?
A partir daqui o leitor talvez comece a entender uma coisa importante: saber se uma ciência X ou uma disciplina Y são necessárias para o praticante de yoga depende de compreender o que é o yoga. Se a essência do yoga estivesse na realização de posturas corporais, sim, seria importante conhecer o corpo em seus mínimos detalhes, inclusive com conhecimentos de anatomia.
Donde a pergunta: qual relação o yoga tem com as posturas corporais? Resposta: pouca, quase nenhuma.
Se o yoga consiste em meditar, todo o conhecimento de anatomia de que você precisa é aquele necessário para você sentar-se com conforto, respirar calmamente e meditar -- coisas que uma criança tem condições de fazer sem ter estudado anatomia. Todos os grandes mestres yogis dos últimos séculos, desde Gorakshanath até Ramana Maharshi, também conseguiam fazer essas coisas sem nenhum conhecimento de anatomia. Em resumo, para realizar yoga não é necessário conhecer anatomia.
Vou além: estudar anatomia é um obstáculo para a prática de yoga.
Pensemos: se conhecimentos de anatomia não são necessários para realizar yoga, por que alguém interessado em yoga estudaria anatomia? Certamente não para realizar yoga, mas para realizar posturas com perfeição anatômica. Este objetivo, claro, pressupõe que a realização de posturas com perfeição anatômica é mais importante do que realizar yoga. Em pouco tempo, o praticante estará mais preocupado em explorar os limites anatômicos de seu corpo (por exemplo, ampliar a torção de um matsyendrasana) do que em realizar asana para encaminhar-se para o samyama. Em outras palavras, o que era um anga do yoga perde seu sentido original e seus aspectos mais superficiais passam a ser os mais importantes na definição e no direcionamento da prática -- que, a esta altura, não merece mais ser chamada de yoga.
Um detalhe curioso: verdadeiros hathayogis não se lesionam; «yogis modernos», que têm profundos conhecimentos de anatomia, às vezes se lesionam. (Observe a quantidade de instruções sobre anatomia são disponibilizadas hoje em dia com o subtítulo «como prevenir lesões no yoga».)
Como é possível que os verdadeiros hathayogis, sujeitos que vivem isolados em ashrams ou até mesmo em cavernas e florestas praticando hathayoga, afastados de todo conhecimento ocidental sobre anatomia, como é possível que esses sujeitos não se lesionem? E como é possível que aqueles «yogis modernos», que são profundos conhecedores de anatomia, acabem se lesionando ao realizar algumas posturas? Não deveria ser o contrário?
O que ocorre aqui é parecido com os tristes casos de afogamento em praias e rios: quase todas as vítimas de afogamento eram pessoas que sabiam nadar. Se a natação é entendida como um meio de expor-se a situações perigosas sem risco algum, então o sujeito acreditará que é dotado de um poder suficiente para essa exposição. E é aí que tragédias acontecem.
No yoga acontece algo semelhante quando se trata de estudar anatomia. O conhecimento de anatomia traz embutida a noção de que é possível «ampliar limites» e de que isso é bom e importante no yoga. E é aí que o sujeito se lesiona. Observe que a esmagadora maioria dos estudantes de anatomia em escolas e «studios» de yoga busca esses conhecimentos não porque quer entender melhor o próprio corpo, mas porque quer «intensificar o asana» sem se sujeitar aos riscos que essa intensificação oferece ou porque -- no caso de um curso de formação -- quer orientar pessoas que têm interesse nisso. Oras bolas, por que seria necessário «intensificar o asana»? O que isso tem a ver com yoga?
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Perguntas e respostas relacionadas ao tema:
1) Então, não devo estudar anatomia?
Se seu interesse é em yoga, você deve estudar yoga, não anatomia.
2) É ruim estudar anatomia?
Não. É bom estudar anatomia -- sem ironias. É sempre melhor conhecer seu corpo do que não conhecê-lo. Recomendo que todos estudem um pouco de anatomia, assim como recomendo que todos estudem um pouco de fisiologia, de nutrição etc. -- enfim, ciências que têm relação com seu corpo, com sua mente etc. Mas, novamente, esses conhecimentos nada têm a ver com yoga. Se você busca esses conhecimentos com o objetivo de se tornar um yogi, você está se enganando e se afastando do yoga.
3) Faço um curso de formação que inclui aulas de anatomia. Estou jogando meu dinheiro fora?
Sim, está. Cursos de formação que incluem aulas de anatomia baseiam-se na idéia obviamente falsa de que tal conhecimento é necessário não apenas para realizar yoga como também para ensinar yoga.
4) Devo parar o curso?
Não sei. Um curso de formação que inclui aulas de anatomia parte do pressuposto de que o futuro instrutor atenderá alunos que buscam «aulas de yoga» da mesma forma que algumas pessoas buscam aulas de pilates, de alongamento ou mesmo de musculação. Estas pessoas terão interesse em conhecimentos de anatomia porque já chegam com a idéia de que isso é importante para a prática de yoga. Se você quer recuperar seu investimento, provavelmente será necessário concluir o curso e trabalhar por um tempo atendendo esses alunos. Em resumo, você precisará continuar se enganando por algum tempo.
5) Você só teve condições de escrever este texto porque estudou anatomia. Isto não prova que para desenvolver-se no yoga é necessário conhecer anatomia? Não é possível dispensar um conhecimento que não foi assimilado.
Sim, estudei anatomia, mas não tanto quanto os praticantes e instrutores de yoga interessados em «alinhamento de asanas», «ajustes e correções de asanas», «asanas musculares», «asanas para quem tem escoliose» etc. Garanto ao leitor que meus conhecimentos sobre anatomia não são maiores do que os de um adolescente recém-saído de um bom ensino médio. A questão aqui não é conhecer anatomia, mas conhecer yoga.
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