Às vezes «a sua verdade» aparece como «a minha verdade» ou como «cada um tem a sua verdade», o que dá no mesmo. Estas três expressões significam a mesma coisa.
A idéia essencial é a seguinte:
Todas as pessoas são diferentes, têm convicções distintas e todas, sem exceção, têm o direito de ter essas convicções respeitadas. Eu tenho a minha verdade, você tem a sua verdade, cada um tem a sua verdade e todos nós devemos viver em paz e harmonia respeitando as verdades dos outros.
Trata-se, no fim das contas, de algo que também pode ser chamado de «respeito mútuo a verdades individuais».
Se você não percebeu de primeira que esta idéia é falsa e catastrófica, então este texto é para você.
Prossigamos.
1. Não existe «minha verdade». Não existe «verdade pessoal».
Por definição, a verdade não é algo subjetivo ou relativo. É objetivo e absoluto.
Dizer que uma verdade é subjetiva e relativa é um oximoro, é uma contradição em termos, é o triângulo redondo, é a queda para o alto, é o flagrante retroativo.
Não há qualquer sentido numa verdade que é delimitada pelas idéias e convicções de uma única pessoa ou de um grupo de pessoas.
«Verdade subjetiva e relativa» é opinião, visão pessoal, versão, interpretação ou, em casos mais graves, transtorno mental. Se é verdade, tem validade universal. Se não tem validade universal, não é verdade.
2. Mas e os índios de uma tribo isolada? Eles não têm a verdade delas? Isso não deve ser respeitado?
Respeitado, sim e apenas na mesma medida que se deve respeito a qualquer ser humano. Aceito, não necessariamente.
Pensemos, por exemplo, nas tribos que têm o costume de enterrar vivas as crianças que nascem defeituosas. A crença é de que estas crianças trazem má sorte para a tribo. É a «verdade» daquela tribo, algo válido no círculo estrito daquela tribo.
Antropólogos e outros especialistas devotos da idéia da «minha verdade» dizem que o homem branco não deve interferir nesse costume de executar crianças defeituosas.
A idéia de não-interferência e o costume abominável de execuções sumárias só sobrevivem quando a «minha verdade» exclui o contraditório, isto é, quando a «minha verdade», limitada e pessoal, recusa a simples possibilidade de existência de «outra verdade».
Em outras palavras, o índio adulto que enterra viva a criança defeituosa e o antropólogo que acha isso aceitável não consideram que aquela criança também tem o desejo e o direito de viver, exatamente como o índio e o antropólogo têm.
Em resumo, a importância dada às «verdades individuais» resulta na exclusão de «outras verdades» e também de verdades universais.
3. Mas e daí? E o yoga?
Sim, voltemos ao yoga, mas coloquemos o seguinte com base no que foi dito antes: uma verdade só é uma verdade porque sobreviveu ao teste da realidade e foi colocada à prova com inúmeros contraditórios.
Por exemplo: eu digo que o céu é azul e você responde
Esta é a sua verdade. A minha verdade é que o céu é verde.
Há dois cenários possíveis a partir daqui.
No primeiro, eu saio andando afirmando que o céu azul, você sai andando numa outra direção afirmando que o céu é verde. Ficamos ambos com o respeito mútuo às «verdades individuais», que são meras expressões de convicções pessoais. Fim.
No segundo cenário, eu e você passamos a analisar as duas «verdades», tratando-as não como axiomas, mas como hipóteses. Isto nos leva às seguintes questões:
a. O que é cor?
b. Como funciona a percepção das cores?
c. O que é a cor azul?
d. O que é a cor verde?
e. O céu é um objeto cuja cor pode mudar? Se sim, por quais motivos?
f. Ou aquilo que se vê no céu tem uma cor constante? Esta cor é azul ou verde?
g. O espectro de cores possíveis do céu exclui a cor verde?
h. É possível que um objeto naturalmente azul seja percebido como verde (ou vice-versa)? Se sim, por quais motivos?
etc.
ser a «sua verdade», a verdade existe.
Agora sim, o yoga.
Ou melhor, ainda não. Falta um ponto antes de tratarmos da «sua verdade» no yoga.
4. Da validade e das implicações da expressão «minha verdade».
A questão aqui é a linguagem.
Se, como vimos no item 1, «minha verdade» é uma expressão sem sentido e necessariamente contraditória, usá-la com convicção é sinal de que o problema não está apenas na percepção e no entendimento da realidade.
Quem usa a expressão «minha verdade» a sério também tem problemas também no uso da linguagem.
Nas situações em que esta expressão é usada, fica claro que «minha verdade» é uma forma elegante e eufemística de dizer «minha mentira», «meu delírio», «minha ilusão», «meu faz de conta».
Pense numa criancinha de 3 anos de idade.
Quando você é uma criancinha de 3 anos de idade, você faz de conta que é um super-herói. Você não é um super-herói, você apenas faz de conta que é um.
Não é como um fingimento. Fingimento é aquilo que o ator faz num filme. A criança não finge, ela faz de conta. Parte de sua consciência sabe que ela não é um super-herói, outra parte acredita que ela é. E é por isso que a criança brinca de ser um super-herói com convicção, o que é o mesmo que dizer que a criança anda no limite entre a brincadeira e a alucinação. Se parecer assustador, substitua «alucinação» por «sonhar acordado».
Quando você é um recém-nascido o mundo consiste em cocô, seios e vultos e seus recursos lingüísticos se limitam a duas coisas: abrir o berreiro quando aqueles três elementos trazem algum desconforto físico e ficar quietinho fazendo sons fofinhos quando eles trazem conforto físico.
Aos 3 anos de idade o mundo é mais complexo. Embora nessa idade ainda exista a idéia de que o mundo é limitado aos próprios interesses, a realidade já deu mostras de que é um pouco mais complexa: um tombo mostra que perder o equilíbrio e bater o joelho no chão dói, o que exige da criança cada vez mais atenção ao sair correndo. Ela quer correr, ela quer voar, mas o chão e a força da gravidade dirão que há limites para estas coisas.
Quando a criança de 3 anos faz de conta que é um super-herói, isto é possível porque um adulto sempre está por perto para acompanhar a brincadeira. Esse adulto pode participar da «verdade da criança» ao ponto de fazer de conta que é um vilão, mas não ao ponto da criança achar que ela é um super-herói de verdade e querer saltar pela janela achando que vai voar.
Aos 3 anos de idade o risco do faz de conta era de querer saltar pela janela, o que se resolve facilmente com a presença de um adulto. A criança de 3 anos de idade tem diante de si a perspectiva de brincar de faz de conta por mais uns 5 ou 6 anos (varia conforme a criação, claro). Quem já é adulto não tem.
Se você brinca de «minha verdade» aos 3 anos de idade, usando o vestido da Princesa Elsa, você é fofinha e engraçada e seus pais ficam tranqüilos porque sabem que um dia você vai deixar de ser criança e vai entender as diferenças entre realidade e imaginação.
Se você brinca de «minha verdade» aos 30 anos de idade, você não é fofinha e engraçada, você está sendo retardada ou pilantra.
E é aqui que podemos finalmente voltar ao yoga.
5. Afinal, qual o problema da «minha verdade» no yoga?
O primeiro problema é que não existe «a minha verdade» no yoga. Existe a verdade do yoga.
Se o que você considera «a minha verdade» é diferente da verdade do yoga, então não é verdade alguma. O contrário de verdade é mentira, auto-engano, ilusão, delírio. Se fosse uma criança, poderia ser um faz de conta, mas agora estou falando de yoga e de adultos.
Você pode duvidar do que eu disse, claro. Por exemplo:
Mas existe, sim, a minha verdade. Eu faço vinyasa e sinto a introspecção, o fluxo das energias sutis, eu me conheço, me aceito e me compreendo quando pratico vinyasa. Por que excluir isso? Por que isso seria um delírio?
O que você sente ao praticar vinyasa ou qualquer outra coisa sem relação com o yoga não é um delírio. Aconteceu, é real. Mas não é a sua vivência que está sendo discutida. Aliás, não se trata de você, não se trata de nada que possa ser identificado como «seu».
O que está sendo discutido é a validade disso COMO YOGA.
A questão aqui é idêntica àquela discussão sobre a cor do céu.
O céu é azul ou é verde? Se houver qualquer dúvida, se houver qualquer choque entre «minha verdade» e «sua verdade», é necessário que o choque realmente aconteça, pegue fogo, que as «verdades» saiam no tapa e sejam trazidas novamente para o campo das hipóteses e das possibilidades e sejam investigadas até que se possa concluir algo a respeito da cor do céu.
Claro que isto depende do grau de interesse em chegar a alguma conclusão.
Pode não ser muito importante para este mundo que haja pessoas que crêem que o céu é azul, outras que crêem que o céu é verde ou bege ou rosa-choque. Pode não ser muito importante que haja pessoas que crêem que yoga é ginástica e que até o ensinam desta forma. Novamente, é a vivência delas, é a experiência delas.
Um céu imaginário desenhado com dois lápis diferentes por uma criança de 3 anos num papel sulfite pode ser azul e verde ao mesmo tempo. Mas o céu não pode ser azul e verde ao mesmo tempo e de fato.
De modo análogo, o yoga não pode ser ginástica e prática de samadhi ao mesmo tempo pelo simples fato de que ginástica e samadhi pertencem a planos diferentes da realidade. É como ser um axioma e um abacate ao mesmo tempo.
A afirmação da «minha verdade», que diz que vinyasa intensifica o fluxo das energias sutis, só é possível mediante a exclusão discriminatória da verdade estabelecida pelos mestres -- uma turma que ao longo de muitos séculos afirmou uma única e mesma coisa a respeito do yoga, algo que Vyasa, inspirado por Patañjali, expressou com força e pureza inigualáveis:
Na realidade, este é o único problema.
Se a «minha verdade» fosse realmente uma escolha individual, restrita à ermida que a pessoa escolheu para si e apenas para si, eu nem teria começado a escrever este longo texto.
O problema é que quem acredita na «minha verdade» não a quer fechada numa ermida.
Quem acredita na «minha verdade» quer que a «minha verdade» seja sua também, seja nossa, seja de todos. Quer o coletivo, quer as ruas, quer o viral, quer seguidores e clientes.
Quem acredita na «minha verdade» quer que ela seja transformada num novo estilo, num novo método, que sempre, sempre, sempre vai receber o nome de «yoga» e vai virar um curso online, ainda que a simples existência desse novo método baseado na «minha verdade» ignore cinco verdades simples cuja lembrança invalidaria todas as «verdades inidividuais e subjetivas»:
I. O yoga tem uma origem
II. O yoga tem criadores
III. O yoga tem mestres
IV. O yoga tem tradição
V. O yoga tem linhagem
Quem reconhece estas cinco verdades simples abandona qualquer idéia ou pretensão a respeito de «minha verdade» por uma razão muito simples: no yoga não há margem para «meu», para escolhas pessoais e para visões pessoais.
6. Mas eu acho que a «minha verdade» é tão boa que eu quero ensiná-la às pessoas. É a minha contribuição. O yoga me fez tão bem e me trouxe coisas tão boas que agora eu quero compartilhá-lo.
Quem diz isso sem ter um guru não quer «compartilhar» porcaria nenhuma.
Você colocou muita grana num curso de formação que não lhe ensinou nada sobre samadhi, unmani, laya, dvadashanta e prana bandha porque as lições sobre ginástica postural e anatomia tomaram 90% do tempo. Os outros 10% do curso foram ocupados com um bônus de «yoga em dupla», leitura de «O Coração do Yoga», abraços coletivos e lágrimas porque «o módulo deste fim de semana foi lindo».
Para piorar, hoje em dia qualquer pessoa pode produzir e vender «sua verdade» no yoga fazendo um curso xexelento de 200 horas de ginástica mística e colocando fotos bonitas numa rede social. Isto significa que, para destacar-se de outras «minhas verdades», essa «sua verdade» precisará ser maquiada com os vernizes do yoga verdadeiro. Mas isso nem é tão difícil assim.
A referência popular de yogi, pelo menos desde 1960, é o sujeito que consegue fazer a postura da árvore com os olhos fechados sem ser estátua humana em pracinha de cidade turística, que consegue plantar bananeira sem ser capoeirista de vídeo para turista ou que consegue fazer ponte ser uma pré-adolescente que faz balé depois do inglês, da natação e do Kumon. Se o sujeito realiza pelo menos uma dessas proezas, é um yogi de verdade. Pelo menos é o que dizem.
7. Muita arrogância sua dizer que o yoga que eu ensino e pratico não tem valor. Oras, tudo é yoga!
Been there, done that.
Quem sofre da autolatria delirante da «minha verdade» em algum momento tira essa carta da manga: tudo é yoga.
Esta é bem fácil: se tudo fosse yoga, nada seria yoga.
Conclusão:
Quem diz a sério que tudo é yoga precisa de ajuda psiquiátrica.
Quem diz só de brincadeirinha que tudo é yoga tem uma pilantragem escondida na manga.
Porque é óbvio que nem tudo é yoga.
E se é óbvio que nem tudo é yoga, provavelmente deve ser mais adequado usar nomes diferentes para referir-se a coisas essencialmente diferentes como a prática milenar do samadhi e a prática de alongamento místico com trilha sonora da Enya e incenso barato.
8. Em resumo: chega.
Enfie «sua verdade» no lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Para os yogis a «sua verdade» vale tanto quanto aquilo que você deixa no vaso de seu banheiro todos os dias.
Se não ficou claro até aqui, coloco em formato de lista numerada e negritada e com fundo bonitinho, porque eu sei que tem gente que só vai ler esta lista mesmo:
Para finalizar, lembre que no yoga só há três condições: ou você é guruyogi ou você é um aprendiz orientado por um guruyogi ou você não é nada.
Mas não desanime. Ser nada no yoga não significa que você seja um imprestável.
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