Eu fazia 108 surya namaskar a cada solstício.
Revirava a Internet em busca de «posturas desafiadoras». Desenvolvi um estudo dos principais shastras do hathayoga com o objetivo exclusivo de catalogar e comparar as posturas contidas neles -- mas não pelos motivos certos.
Comprei livros com 200, 300, 400 posturas e os usei para construir minha prática diária. Estudei anatomia e alinhamento -- eu cheguei a pensar em comprar um tapete quadriculado. Participei de workshops e «aulões» de asanas. Dei aulas em academias de ginástica e «spas holísticos». Acreditei que isso tudo me ajudaria a realizar yoga. Acreditei que isso tudo ajudaria outras pessoas a realizar yoga.
Minha prática de samyama, que já era ruim, piorou nesse período. Os vrittis aumentaram.
Apesar disso, eu continuava acreditando que aquilo tudo me levaria a realizar yoga. Ou melhor (ou pior): eu sabia que aquilo tudo era o máximo que o yoga poderia proporcionar.
Assim como aquele instrutor norte-americano famosão (não me peça o nome), eu também acreditava que ser um yogi era fazer utthita hasta padangusthasana com máxima extensão das pernas.
Ah, sim, eu conseguia fazer utthita hasta padangusthasana com máxima extensão das pernas. Tinha um bom domínio do corpo. Mas permanecer em silêncio num simples sukhasana por mais de 10 minutos era uma tortura.
Ao fechar os olhos só me vinham imagens de vinyasa suado e da prática postural geometrizada e pensamentos de que eu deveria voltar a transpirar e parar com aquela bobagem de «sentar em silêncio».
Como praticante, a perspectiva mais interessante era a de comprar o «Tratado de Yôga» e passar o resto da vida tentando reproduzir com perfeição as 2000 poses desse livro e depois seqüenciá-las em coreografias e depois ficar azul de tanto treinar e virar o Shiva dançarino e depois tentar alguma coisa com o Guiness (o livro, não a cerveja) e depois destruir o mundo para recriá-lo à minha imagem e semelhança num novo mundo em que todos se alfabetizariam com «Luz na Vida».
Como professor, o mais longe que eu chegaria seria produzir currículos no Word impressos com a tinta no fim, feitos com fonte Times New Roman tamanho 16 em negrito, e passar as tardes os entregando em academias de ginástica e concorrer com professores de educação física e crossfit.
Fui salvo desse destino aterrador quando me deparei com esta frase de Nisargadatta Maharaj:
O que não o leva a moksha necessariamente o afasta de moksha.A ficha não caiu imediatamente porque quem está bebaço de tanto fazer ginástica precisa estacionar, retornar ao sedentarismo por algumas semanas e então recobrar a lucidez que permite compreender frases inteiras. Quando recuperei minha saúde mental, a ficha caiu e eu finalmente enxerguei.
Quatro luzes se acenderam diante de mim, quatro luzes intensas que me tiraram de um lugar pestilento e nauseabundo que eu vou chamar de -- pausa dramática -- Fabuloso Mundo da Ginástica Mística -- mas que para maior realismo também poderia ser chamado de Cracolândia do Wellness.
Eis as quatro luzes:
1. A busca por alinhamento, fortalecimento e alongamento é um obstáculo para a prática de yoga.
Quanto maior o foco nestas coisas, menor o foco em samyama.
É claro que é bom ter uma boa postura, ser forte e ter um corpo flexível, mas estas três qualidades não têm relação com o yoga.
Como saber se algo tem ou não relação com yoga? É simples: se é algo que você pode aprender numa faculdade de educação física, não tem relação com yoga.
2. No yoga, todo desafio é contraproducente.
Quero dizer, o ponto mais alto que se pode atingir por meio de um desafio é o... da superação do próprio desafio -- óbvio, não?
Mas se você tem o QI maior que 17 percebe facinho que nenhuma técnica do hathayoga tem como objetivo desafiá-lo no que quer que seja, mas sim conduzi-lo ao samyama. E o primeiro que vier aqui dizer que «tapasya é uma espécie de desafio» ganha uma bolsa de estudos para o próximo Teacher Training do Bikram Choudhury numa casa da luz vermelha.
3. A prática isolada de asana faz com que o asana seja reduzido a um simples exercício isométrico.
Asana só é asana se estiver inserido numa linha que conecta o indivíduo à prática de laya.
Ah, você não pratica laya... Ok...
Mas que pelo menos o asana aponte para laya, né? Que pelo menos o asana diga pra você:
Ó, quando você estiver aqui comigo, permanecendo em silêncio interior e exterior por uns 10 minutos, aí eu vou segurar na sua mão e seguiremos juntos naquela direção ali.
Se o asana não lhe diz isso, não é asana.
4. É possível, sim, dedicar-se à ginástica mística sem prejudicar sua prática de yoga.
Entender este ponto me trouxe a certeza da libertação.
Sabe aquele lance de «a César o que é de César»? Então.
Quando você se cura da idéia de que ginástica mística pode iluminar, você consegue de fato se dedicar à ginástica mística e obter seus benefícios e também consegue buscar os meios que vão levar você ao entendimento real de si mesmo -- porque, lamento dizer, ginástica mística não o conduz a ao entendimento real de si mesmo. (brincadeira, não lamento não)
Então, se você entende isso você pode fazer as duas coisas sem problema algum. Você pratica yoga logo ao acordar e no final da tarde você pratica ginástica mística. Ou vice-versa.
A chave é não misturar essas duas coisas, não se iludir que elas podem ser misturadas, não inventar moda, não imaginar que o yoga vai deixar você fitness, não imaginar que a ginástica mística vai deixar você iluminadão e, acima de tudo, não ser o tocador de didgeridoo dos pinéis delirantes dizendo «você já é a felicidade que você busca» enquanto cinco alunos sofrem com o desafio dos 108 suryanamaskar num ambiente impregnado com aquele som abominável.
Tem limite pra tudo nesta vida.
Tudo, afinal, se resume a viveka: discernir, diferenciar, distinguir, discriminar, «seja o sim sim e o não não» -- ou em termos mais comuns para a galera do yoga: não alimentar a idéia de que o eterno é finito, que o puro é impuro, que alegria é dor e que o Ser é não-ser (Yoga Sutras, II:5).
E, claro, não alimentar a idéia de que ginástica mística é yoga.
Comentários