Mentiram para você sobre o yoga — Parte 2: E agora?

Meu artigo anterior causou comoção em mais de três pessoas da yogosfera. Choro e ranger de dentes. Expressões de temor, aflição, ansiedade, suor frio.

«Por Shiva, e agora?!?», perguntou um leitor sem conseguir esconder a súbita mioclonia na pálpebra esquerda.


«Esse artigo me f**eu!», escancarou uma outra pessoa lançando perdigotos no ar.


«Pooooooooooo, como que você faz uma dessa?!? Logo agora que eu ia ministrar um curso de alinhamento na pós da Uniesquina!», resmungou um outro, procurando a carteira de trabalho.


 Mas não é para tanto.

Acreditando que não é mesmo para tanto, decidi escrever a segunda parte daquele artigo.

O objetivo deste artigo aqui não é piorar as coisas, mas responder uma pergunta muito simples: e agora?

Esse «e agora?» sobrevém num sobressalto quando você se dá conta de que passou toda a sua vida de yoga mentindo (sim, mentindo; porque eufemismo é meu carcará de óculos). Aí... uma destas duas coisas vai acontecer:

1. Você vai parar de mentir
2. Você vai continuar mentindo

No primeiro caso, se você toma consciência de que estava mentindo e pára de mentir, você vai ficar de mãos vazias e vai procurar meios de preenchê-las, o que pode indicar um recomeço, uma súbita devoção ao estudo sério do yoga. Há esperança.

No segundo caso, se você toma consciência de que estava mentindo e continua a mentir, isto é o mesmo que mentir com convicção — um sinal de devoção à própria mentira. A única esperança (supondo que exista alguma) é de que você encontre alguém do primeiro caso para lhe dizer umas poucas e boas, porque eu mesmo não estou muito a fim de fazer isso.

Claro que é às pessoas do primeiro caso que este artigo se destina.

É claro também que este artigo foi feito para professores — gente que tem a responsabilidade de ensinar e que depende do yoga para pagar as contas.

Se você não é professor e está lendo este artigo, então você deve ser um praticante que tem alguma noção das coisas. Assim sendo, peço a gentileza de fazer este artigo chegar até seu professor. Obrigado.

***

A situação aqui é a seguinte: você ensinava mentiras e agora você sabe que são mentiras e não quer mais ensinar aquelas coisas, mas não sabe o que fazer e também não quer perder seus alunos e ir à falência. 


A busca de conteúdos verdadeiros e sérios atende a parte do «não quer mais ensinar aquelas coisas», mas não atende a parte do «não quer perder alunos e ir à falência». Aprender o que é certo leva tempo e nesse período as chances de você perder muitos alunos (ou todos) é grande.

Boletos e alunos não esperam. Quase tudo nesta vida é urgente. Se você tem uma família para cuidar, colocar comida dentro de casa é urgente. Se você não tem uma família para cuidar, isto significa que sua família é que cuida de você; neste caso, libertar sua família é que é urgente.

O que fazer?

Recomendo duas coisas — na verdade, duas reflexões que podem ajudá-lo.


1. Parar de mentir não o obriga a jogar no lixo o conhecimento que você considerava correto.

Vamos pegar um exemplo: o vinyasa.


Lá naquele artigo eu expliquei que o vinyasa não tem relação com yoga. É uma ginástica apenas.

Se ao ler aquele artigo você entendeu que o vinyasa era uma mentira, você entendeu errado. O vinyasa em si não é uma mentira e não há qualquer problema em praticá-lo. Neste vídeo eu digo com letras de forma que vinyasa é bom para caramba. A mentira está em apresentar e ensinar o vinyasa como parte do yoga.

Não se trata de jogar no lixo o conhecimento que você tem sobre vinyasa, mas de colocá-lo no lugar certo, transmiti-lo como ele realmente é — como ginástica, não como yoga.

Este ajuste pode ser feito com todos os outros conhecimentos que você tem e que de repente você descobriu que não eram exatamente o que você imaginava.

Claro que esta recomendação depende do quanto você precisa desses conhecimentos para pagar as contas. Tem coisa que é melhor mesmo jogar no lixo. Se seu interesse é em yoga, sempre será melhor dispensar tudo que não tem relação com yoga.


2. Mudar um conhecimento de lugar exige um pouco de coragem e muita humildade.

Se você do nada chegar aos seus alunos e disser:

«Pessoal, sabe o suryanamaskar? Então, saporra aí não tem nada a ver com yoga.»

Um terço vai terminar a aula do dia e não vai voltar mais. Nunca mais. (Ok, se você não usar a palavra «saporra», a catástrofe pode ser menor.) 

O outro terço vai pensar «e eu com isso?» e vai continuar com você, como se nada tivesse acontecido.

O último terço dos alunos vai fazer perguntas um pouco incômodas, como por exemplo: «Mas você não dizia o tempo todo que suryanamaskar era yoga? E aquele lance do desafio dos 108 suryanamaskar? Era só ginástica então?»

Sem coragem e sem humildade você não vai conseguir dar a única resposta correta para a última pergunta: «sim, era só ginástica», o que em outras palavras é o mesmo que dizer que você errou com seus alunos.

Mas é isso, né? 

Assumir erros diante das pessoas que lhe pagam para você orientá-las na direção correta exige coragem e humildade.

Deste último terço questionador, uma resposta honesta — corajosa e humilde também — levará metade a desistir de suas aulas e a outra metade a permanecer.

Se você tiver, sei lá, 30 alunos, ficamos assim:

- 1/3 vai desistir imediatamente
- 1/3 vai cagar e andar para esse bla-bla-blá e continuará com você
- O último 1/3 fará perguntas e metade desse 1/3 deixará suas aulas
- Saldo final: 15 alunos ficam, 15 alunos saem.

Sua salinha no Zoom vai ficar meio vazia.  


A partir daí você pode fazer as contas e avaliar até que ponto uma redução de mais ou menos 50% no número de alunos pode ser fatal para o seu bolso.

Um ponto importante aqui é o seguinte: depois de um sincericídio daquela dimensão, os alunos que permanecerem com você podem ser considerados seus fiéis seguidores. Dificilmente eles deixarão você caso haja outros eventos parecidos com esse do vinyasa.

Se o sincericídio em questão não tiver relação direta com o seu modo de conduzir as aulas, provavelmente o impacto negativo será menor.

Por exemplo: o fato de você chamar o vinyasa de yoga ou de ginástica não implica mudanças importantes. Você muda a chave classificatória e continua ensinando vinyasa, falando dos benefícios da prática, estimulando os alunos com desafios do tipo «108 suryanamaskar» e o escambau. Final feliz.

(Não me diga que você pensou em parar de ensinar vinyasa para seus alunos só porque você leu num blog que aquilo é ginástica e não yoga...)

***

Vale a pena destacar um terceiro aspecto aqui: no yoga, a verdade é uma busca que só se torna uma conquista se você tem um guru. Quem não tem guru está condenado (sim, condenado) a passar o resto da vida pulando de galho em galho, fazendo cursos (que nunca ensinarão o essencial) e colecionando certificados numa pastinha de plástico. 

E sabe o que é mais legal? Os seus alunos sabem disso! É por isso que eles não vêem você como guru e acham muito normal dedicar-se ao yoga sem ter um guru.

Lembre que o yoga no Brasil foi inaugurado por autodidatas, gente que «aprendeu yoga» reproduzindo «poses de yoga» de revistas estrangeiras e recebendo lições de fantasmas no banco de trás de um táxi. 

Quando você começa desse jeito, você aceita qualquer coisa, até mesmo mudar da espiritualidade para a ginástica e vice-versa, como quem troca de ficante no Carnaval de Porto Seguro. 

Então, relaxe. 


Se os seus alunos ficaram a vida inteira aceitando a fuleiragem de um yoga sem ascendência, é claro que eles vão aceitar uma súbita manifestação de sinceridade, humildade e coragem. 

E vão continuar lhe pagando por isso.

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