Se você pensa que o yoga precisa ser socialmente responsável, ideologicamente forte e politicamente ativo, então este artigo é para você.
Começo dizendo o seguinte:
Se você pensa que o yoga precisa ser socialmente responsável, ideologicamente forte e politicamente ativo, então você está absoluta, completa e acachapantemente errado. Sim, 100% errado, errado até a medula.
O objetivo deste artigo não é demonstrar uma tese, mas apresentar um fato: o yoga nunca teve, não tem e não terá nenhuma relação com política, ideologia e questões sociais — não importa qual yoga você pratica, não importa o que você pense de uma suposta importância sócio-política do yoga e da situação política do Brasil e do mundo.
Eu sei, eu sei... você está preocupado porque o candidato X fala coisas que você considera ruins, porque o candidato Y fez coisas que você considera ruins, porque o candidato Z mente até não poder mais, porque o candidato W parece razoável mas não tem chances de ganhar uma eleição. Eu sei, acredite, eu sei. E eu sei também que cada um de nós pode fazer muita coisa para que pessoas boas assumam cargos políticos importantes e para que pessoas ruins fiquem longe desses cargos.
Mas o que isso tem a ver com yoga? Aí é que está: nada.
«Ah, mas o brâmanes oprimiam o povo e cobravam para realizar rituais...»
«Ah, mas o tântricos eram rebeldes que desafiavam a ordem vigente...»
«Ah, mas as escrituras sempre falaram da importância de fazer o que é certo e justo...»
«Ah, mas o mestre ABC era contra a dominação britânica...»
Silêncio, per favore.
«Ah, mas...»
Silêncio. Espera só um pouco.
Pronto?
Então prossigamos:
Primeiro, lembre o que é o yoga e o que é ser um yogi.
Yoga é um caminho de solidão e de silêncio. Yoga é o caminho para a solidão e para o silêncio, porque sem estas duas coisas não se chega à única compreensão importante, verdadeira e profunda (você sabe qual é essa compreensão e por isso eu não preciso repeti-la aqui).
Ser um yogi é compreender o que é o yoga e aplicá-lo em sua vida. Em outras palavras, ser um yogi é conectar-se com a solidão e com o silêncio, ter estas duas coisas como partes tão importantes em sua vida quanto o ar e a água.
Se você entende o que é o yoga e o que é ser um yogi, entende que não há espaço na vida de um yogi para coisas que possam afastá-lo da solidão e do silêncio. E aqui chegamos num dos pontos importantes deste artigo: quase todas as coisas deste mundo são do tipo que afastam da solidão e do silêncio, quase todas as coisas deste mundo são ruidosas e sociais, quase todas as coisas deste mundo são opostas ao yoga.
Note que eu estou falando de yoga e de yogis. Não estou falando do cidadão pagador de impostos. Não estou falando do seu Zé da padaria. Não estou falando do adolescente que vai escrever redação sobre um tema atual no ENEM, nem do pai de família que todo mês precisa estar atento às datas dos boletos, nem da sua avó que gosta de fazer meias de crochê enquanto vê novela, nem do balconista que quer fazer SENAI pra mudar de vida.
Para um yogi, o cidadão pagador de impostos, o padeiro, o adolescente às portas da universidade, o pai de família, a avó e o balconista são personagens, são papéis que os indivíduos desempenham por um certo período de existência da mente e do corpo. Mas, assim como o ator não se confunde com o personagem, o yogi também não se confunde com o papel social que ele desempenha. Um yogi pode ser um padeiro, um pai de família ou um balconista, mas nenhum destes papéis o afasta de sua condição de yogi, isto é, nenhum destes papéis o faz perder a conexão com o silêncio e com a solidão.
Em outras palavras, um yogi pode ser um padeiro assim como um padeiro pode ser um yogi, basicamente porque a condição de yogi e a condição de padeiro são de naturezas diferentes. E isto nos leva a lembrar que, embora aconteça neste mundo, o yoga não é deste mundo.
E a política?
Bem, existe algo mais «deste mundo» do que a política?
Se, depois do que expliquei sobre yoga e yogis, você demorou mais do que cinco segundos para perceber que yoga e política situam-se em extremos opostos do espectro da realidade, então você precisa voltar 10 casas e reler o verso 2 do capítulo 1 dos Yoga Sutras: «yoga é a interrupção dos movimentos da mente». O sábio Vyasa, principal comentarista dos Yoga Sutras, colocou de forma mais simples: «yoga é samadhi» — e uma tradução momentaneamente aceitável para samadhi é «meditação profunda».
Não pretendo aqui discutir em nível teórico-conceitual o que é a política. Para entender este artigo é suficiente observar o que é a política nos níveis e meios mais ordinários: redes sociais, sites de notícias, telejornais etc. A política está por toda parte, ainda mais em ano de eleições, como este 2022. Aristóteles a definiu como um meio para a felicidade coletiva, isto é, a felicidade dos habitantes de uma cidade, um estado ou nação. Ainda que as intenções sejam boas, na prática sabemos que a política é um pouco diferente da idealização aristotélica.
Agora releia o parágrafo anterior fazendo um esforço para encaixar o yoga em alguma frase ou contexto. Lembre do silêncio e da solidão, lembre da meditação profunda. Conseguiu? Nem eu.A política atual é tristemente condicionada por assuntos atuais demais, palpáveis demais, práticos demais, superficiais demais, coletivos demais. Atualidade, palpabilidade, praticidade, até mesmo a superficialidade e a coletividade são qualidades que têm alguma importância, mas não para um yogi, não para o yoga.
Em resumo: querer que o yoga seja político não faz com que ele realmente seja.
***
O essencial já foi dito para que o leitor possa compreender a relação entre yoga e política — isto é, a falta de relação. Parte das considerações aqui anotadas apareceram pela primeira vez neste vídeo, apenas ditas com palavras diferentes. Caso interesse, siga o link.
Na verdade, a idéia deste artigo veio desse vídeo — mais especificamente de um comentário que recebi logo depois que o publiquei em meu canal no YouTube.
Para fins estritamente didáticos, nesta segunda e última parte deste artigo reproduzirei e analisarei esse comentário. Vamos a ele:
Vejo que em falas neutras como esta, todo o sentido do yoga se perde. Nem é preciso ir longe, o Bhagavad Gita, mesmo, é político do início ao fim. Ou este próprio yoga mencionado no vídeo não se relaciona com os básicos yamas e nyamas? É preciso mesmo alguma dose de criatividade para descolar o yoga da vida em comunidade, da política, da compaixão, da evolução do pensamento e do si mesmo. Só não entendo qual seria a finalidade do yoga, se ele fosse como descrito no vídeo. Yoga nunca foi neutro e desconectado da vida mundana. Isto é um engano que favorece a ignorância.
Todas as afirmações contidas neste comentário serão analisadas, uma por uma. Mais do que simplesmente refutá-las, meu objetivo aqui é explicar o que é necessário compreender quando o tema «política e yoga» volta à cena. Faço isso porque pelo menos uma vez a cada quatro anos esse tema volta à cena e porque talvez você mesmo ainda esteja com tantas dificuldades para entendê-lo que não vê nada de esquisito no comentário que reproduzi acima — talvez você até concorde com ele.
Comecemos:
1. «Vejo que em falas neutras como esta, todo o sentido do yoga se perde.»
Qual é «todo o sentido do yoga»? Política? A vida em comunidade? É isso que Patañjali ensina? É isso que Gorakshanath ensina? É isso que Ramana Maharshi ensina? Se a pessoa lê as escrituras, lida com bloqueios mentais e emocionais sobre o tapete e conclui que um yogi precisa posicionar-se politicamente e ser um ativista social para chegar àquilo que os mestres ensinavam, ela está num estado de confusão profunda — ou foi mal instruída desde que começou seus estudos de yoga.
2. «O Bhagavad Gita, mesmo, é político do início ao fim.»
Essa é a maravilha da literatura filosófica e religiosa do Oriente: cada página é um espelho. Um mesmo livro pode ser entendido como um cântico transcendental ou como um manifesto político — depende da cultura e da mentalidade do leitor.
Se a pessoa leu o Gita e viu «política do início ao fim», se a pessoa viu imanência num tratado de transcendência, isso diz mais sobre ela e sobre sua compreensão do yoga do que sobre o Gita. Surpreende, mas não tanto: num mundo que já associou o yoga a veganismo, a ecologia e a neurofisiologia, associá-lo a política não parece assim tão estranho.
Também não surpreende tanto se lembrarmos da doença pós-moderna da universalidade: «tudo é política», «tudo é sexo», «vivemos numa sociedade de informação», «vivemos numa sociedade de consumo», «você é o que você come» etc. Se você acredita que não existe nada fora da política, se você você acredita que tudo é política, como é que o Bhagavad Gita poderia não ser uma obra política do início ao fim?
3. « Ou este próprio yoga mencionado no vídeo não se relaciona com os básicos yamas e nyamas?»
Yamas e niyamas ajudam? Se você for iniciante, ajudam um pouco. Se você já entende o que é o Silêncio, manter-se algemado a yamas e niyamas é bloquear a própria prática, é querer continuar engatinhando depois que você aprendeu a correr.
Outro erro notável nesse trecho é a associação de yamas e niyamas com atuação política e social, como se estes dois angas tivessem sido criados especificamente para esse fim e não para quem quer se tornar um meditador. É necessário ser um péssimo leitor dos Yoga Sutras para fazer essa associação.
4. «É preciso mesmo alguma dose de criatividade para descolar o yoga da vida em comunidade, da política, da compaixão, da evolução do pensamento e do si mesmo.»
É justamente o contrário. É preciso muita criatividade para associar o yoga a papéis sociais e políticos. É preciso muita criatividade para conhecer os ensinamentos de Patañjali, Gorakshanath e tantos outros mestres e concluir que eles estão ensinando que o yoga é vida em comunidade. A não ser que a pessoa não conheça esses ensinamentos...
Mas a confusão não está apenas nisso. A pessoa começa falando do yoga para a vida em comunidade e para a política e termina falando do yoga para a evolução do pensamento e para o si mesmo.
É possível o yoga atender as duas finalidades? Absolutamente, não. Não existe um yoga para a vida em comunidade por um motivo simples: o yoga não é feito para comunidades, coletivos, sociedades, mas para indivíduos. O que os indivíduos vão fazer coletivamente, como eles vão se posicionar politicamente e qual ideologia eles vão seguir são assuntos socialmente importantes, mas sem relação com o yoga.
Desejar que o yoga seja uma prática política não muda o fato de que ele nunca foi uma prática política. Socialmente falando, um guruyogi é apenas um mensageiro, um garoto de recados, alguém cuja missão social (quando existe) resume-se a reproduzir as palavras de seu próprio guru, que por sua vez reproduziu as palavras de seu guru etc. O que caracteriza um guruyogi não é sua atuação como líder comunitário, como ativista social, como político ou ideólogo ou influencer porque estas coisas são o contrário do que um yogi precisa ser. A prática de yoga consiste em ligar o foda-se para este mundo, exercitar a capacidade de lhe dar as costas para liberar-se das amarras mundanas.
5. «Só não entendo qual seria a finalidade do yoga, se ele fosse como descrito no vídeo.»
Qual a finalidade de libertar-se das amarras da mente? Qual a finalidade de saber quem você é? Qual a finalidade da transcendência? Enxergar a libertação, o autoconhecimento e a transcendência através do binóculo da política, da imanência e da vida em comunidade é um sinal de que a pessoa valoriza muito mais estas coisas do que aquelas.
O yoga é uma disciplina de transcendência. Se você não tem interesse em transcendência, se seu interesse é nas coisas destes mundo, em ser o mais forte, o mais bonito, o mais saudável, o mais bem-sucedido, o mais engajado, o mais atuante socialmente, o mais politicamente consciente, provavelmente o yoga não é para você. Você pode estar no yoga — e nenhum professor sério irá virar as costas para você — desde que tenha alguma disposição para a transcendência, mas não pode estar no yoga se seu interesse maior é em modelá-lo conforme sua imagem e semelhança.
6. «Yoga nunca foi neutro e desconectado da vida mundana. Isto é um engano que favorece a ignorância.»
Estas duas frases que encerram o comentário que recebi são a prova final de que a pessoa nunca entendeu o yoga.
Primeiro, pessoas é que não são neutras nem desconectadas da vida mundana, não o yoga.
É evidente que existir neste mundo é estar conectado com ele. Se você já precisou ir ao mercado para comprar comida, sabe do que estou falando. Essa conexão é uma condição universal sem exceções. Mesmo o saddhu que vive isolado em meditação não está desconectado deste mundo; mesmo que não dependa de outras pessoas, depende deste mundo, de água e alimento e seus eventuais deslocamentos em busca destas coisas são condicionados por tudo que existe ao seu redor.
Porém, essa universalidade não define tudo neste mundo. Um soneto, um lápis, um copo d’água, um elefante, uma nuvem — embora todas estas coisas tenham alguma relação com este mundo, nenhuma delas é definida por essa relação. Relacionar-se com o mundo é apenas um aspecto da realidade, não o único e geralmente não o mais importante.
Assim é com o yoga.
A eventual atuação política de um yogi não significa que o yoga pode ser definido a partir do político ou que o yoga em si mesmo seja político. A relação que um yogi estabelece com uma comunidade, o papel que ele cumpre como membro desta comunidade não significa que o yoga é um meio de atuar numa comunidade. Afinal, nem tudo é política.
«Samyoga» é a palavra que aparece nos Yoga Sutras para representar a união com as coisas deste mundo, a identificação com o mundo percebido. Yoga é o processo de desidentificação com o mundo percebido. A ignorância — avidya — é justamente pensar que yoga é samyoga: não um meio de libertação, mas um meio de aprisionamento nas coisas deste mundo. Uma das coisas que mais favorecem a ignorância é a politização do yoga.
***
Pronto, acabou. The end. Le fin. Das ende. 終わり.
Se você chegou até aqui, agradeço a leitura e convido: num mundo cada vez mais barulhento, atreva-se a ser um yogi. Não existe nada mais revolucionário neste mundo do que libertar-se dele.
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