A desmoralização do yoga


O objetivo deste artigo é chover no molhado. Tudo o que vou dizer aqui a respeito do tema «yoga e moral» já é amplamente conhecido por quem estudou a tradição e por quem leu e entendeu as escrituras. 

Mas o assunto será novo para quem acredita que praticar yoga implica, exige, obriga, enfim, é o mesmo que adotar um comportamento social assim ou assado. Não, não é. Por redundante que possa parecer, o objetivo deste artigo é desmoralizar o yoga, não no sentido de degradá-lo, de torná-lo imoral, mas no sentido de resgatar sua dimensão amoral, de desconectar o yoga do moralismo que lhe foi artificialmente imposto.

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Primeiro, precisamos entender o problema — que não é pequeno.

Cerca de 100 anos atrás, quando o yoga começou a se tornar conhecido no Ocidente, os primeiros professores que vieram da Índia se depararam com uma cultura alheia às bases filosóficas e religiosas do yoga. 

Afinal, o yoga não foi feito nem por ocidentais nem para ocidentais e o que aconteceu foi um choque cultural — ou, melhor dizendo, uma colisão cultural: de um lado o yoga, tradição milenar de origem indiana; de outro lado, a cultura ocidental, que no final do séc. XIX era marcada por frankensteins do intelecto, como positivismo e materialismo. 

Não vou me alongar nas explicações sobre as diferenças culturais, muito menos sobre positivismo e materialismo. Para continuarmos, basta lembrar disto: o embate entre duas culturas nunca termina empatado.

Positivismo e materialismo reduziram a cultura do yoga aos cuidados com o corpo — chamemos este fenômeno de imanentização do yoga. Vemos isto nas terapias de saúde e em seus efeitos mais comuns, como a cura e a prevenção de doenças. Vemos a imanentização do yoga também na educação física e no desenvolvimento de capacidades físicas. Todos os sistemas disciplinares chamados «yoga» criados nesse período enquadram-se nestes dois casos: são sistemas de ginástica ou de fisioterapia.

Claro que esses sistemas não poderiam ser conectados ao nome «yoga» se não tivessem, pelo menos na superfície, traços do yoga original. É aqui que yamas e niyamas caem como uma luva: são teoria fácil colocada numa linguagem ocidentalizada para quem quer se sentir hinduísta sem precisar pagar o preço, sem precisar raspar a cabeça, sem precisar largar a putaria e as drogas.

Para quem não sabe o que são yamas e niyamas, um resuminho:

Yamas e niyamas são os dois primeiros angas do sistema proposto por Patañjali nos Yoga Sutras. Yamas e niyamas são traduzidos como «observâncias» ou «restrições» ou «regras de conduta». A tradução não importa muito, importa compreender o sentido que yamas e niyamas têm para os ocidentais dos sistemas de ginástica mística e se este sentido tem alguma relação com o sentido original.

Para os ocidentais, yamas e niyamas constituem algo muito parecido com «mandamentos», regras morais, regras para viver consigo mesmo e em sociedade.

Originalmente, yamas e niyamas não têm esse sentido. Yamas e niyamas são apenas recomendações de comportamento. É como se o seu pai dissesse: «não pisa aí que você vai se machucar». Você tem duas opções: você pode pisar, se machucar e ter a experiência ruim ou você pode escutar o seu pai, não pisar ali e não se machucar e a vida segue.

Com yamas e niyamas é a mesma coisa: se você fizer como Patañjali disse, aumentarão as chances de você se dar bem nesse comecinho de yoga; se você não fizer como Patañjali disse, provavelmente você vai ter dificuldades em sua prática e em seu estudo de yoga. Só isso.

Ahimsa, por exemplo. 

Ahimsa significa «não-violência». De ahimsa algumas pessoas deduzem a obrigação de não comer carne, já que o consumo de carne implica matar alguns bichos. Mas você pode ser muito violento sendo vegano e pode ser muito pacífico comendo carne. 

Ahimsa não é sinônimo de vegetarianismo  e não implica a proibição de comer carne, implica apenas evitar causar danos. Acontece que existir neste mundo é causar danos e interagir numa sociedade que é definida pelo conflito de interesses. Em vários momentos da sua vida você vai fazer coisas que outros seres vivos considerarão danosas. Muitas dessas coisas são inevitáveis porque sua vida depende delas.

Por exemplo, se você come um pão, a produção daquele pão dependeu de uma cadeia infinita de recursos (trigo, farinha, embalagens, transportes, edifícios industriais e comerciais etc.) que só podem ser obtidos e mantidos por meio de ações que muitas pessoas considerariam não muito gentis. Toda essa cadeia é estimulada por seu desejo ou necessidade de comer pão.

O que você faz? Pára de comer pão? Você pode até fazer isso, mas se pensar um pouco perceberá que todas as suas ações têm conseqüências nocivas. Se você decidir parar de comer pão por causa disso, precisará pensar em parar de comer outras coisas, de comprar roupas, de realizar sua higiene pessoal, enfim, de existir. É um raciocínio que pode levar a comportamentos incompatíveis com a própria condição humana.

Nisargadatta Maharaj dizia: «a vida se alimenta de vida». Isto poderia encerrar o assunto ahimsa, mas vou continuar mais um pouquinho para esclarecer todas as dúvidas.

Se você «viola» o yama ahimsa, isto é, se você se comporta de um modo violento e causa danos a outra pessoa, esse comportamento tem conseqüências (os hindus diriam «gera karma») que provavelmente não serão boas. Se você se comporta de um modo pacífico e faz o bem a outra pessoa, provavelmente as conseqüências serão boas.

Ahimsa é um yama porque, quando você causa danos a uma pessoa (isto é, quando você «viola ahimsa»), será mais difícil lidar com as conseqüências de suas ações. Para o yoga, o problema disso não é que se trata de uma «má ação» ou que «é melhor fazer o bem», mas sim que ações que causam danos a outras pessoas também causam obstáculos para a sua prática de yoga — isto é, elas produzem ruído com facilidade e o afastam do silêncio interior.

O mesmo vale para os outros yamas e para todos os niyamas. Cumpri-los reduz as chances de você ter perturbações em sua vida de yoga. É apenas isso. Esse «apenas» é a «amoralidade do yoga»: significa que você cumpre normas não para fazer o bem e evitar o mal, mas apenas para realizar yoga.

Voltemos ao Ocidente e aos sistemas modernos de yoga.

Toda essa explicação sobre yamas e niyamas — mais especificamente sobre ahimsa — pode ser levada para duas direções diferentes. 

A primeira é a que expus: é melhor cumprir yamas e niyamas porque assim você terá menos problemas em sua prática. Se você vive identificado com seu corpo e com a sua mente, ações consideradas ruins terão consequências ruins sobre seu corpo e sobre sua mente e você terá dificuldades para dedicar-se ao silêncio interior. 

A segunda é a que o Ocidente adota: é necessário cumprir yamas e niyamas porque só assim você será um yogi, porque um yogi — pelo menos no imaginário ocidental — é uma pessoa «do bem», que só fala e faz coisas boas, porque pessoas iluminadas não violam regras excelsas.

No primeiro caso você é livre para cumprir ou não cumprir yamas e niyamas. A «baliza moral» resume-se à sua vida de yoga, à sua prática de silêncio interior.

No segundo caso você é obrigado a cumprir yamas e niyamas. A «baliza moral» é um dedo apontado na sua cara. E com a obrigação vem a moralização do yoga, a noção de certo e errado baseada em regras de conduta, em mandamentos morais, à semelhança da moral religiosa — e, claro, vem também a idéia de que chegar ao «yoga chitta vritti nirodha», à libertação (erroneamente chamada de iluminação), ao mesmo nível de um Buda depende de ser uma pessoa boa, comportada, respeitadora dos bons costumes. 

«Mas quer dizer então que tudo bem eu sair por aí fazendo besteiras? Não é melhor fazer o bem?»

Estas são as perguntas que um moralista faria, porque um moralista só entende as atitudes humanas a partir de seus critérios morais e moralizantes. Mas o yoga não é moral, nem imoral, mas amoral. Amoralidade não significa desprezar o bem e fazer o mal, significa simplesmente situar-se num plano da existência em que a moral não tem importância. Qual plano é este? É o plano das relações sociais, familiares e amorosas? É o plano do trabalho e dos negócios? É o plano da política? É o plano da justiça? É evidente que não é nenhum destes planos, porque neles a moral é fundamental, mas o plano que nos interessa aqui é o do yoga.

Fazer o bem ou fazer o mal a outras pessoas... nada disso faz diferença para o yogi em sua prática de yoga porque esta prática não tem nenhuma relação com fazer o bem ou fazer o mal, não tem nenhuma relação com a vida em sociedade. 

Em outras palavras: fazer o bem é bom, tornar-se um Buda é bom, mas não existe uma relação de causa e efeito entre fazer o bem e tornar-se um Buda. Forçar uma relação de causa e efeito entre moralidade e elevação espiritual é uma forma de não entender nenhuma dessas duas coisas e de não conseguir realizá-las em sua vida.

É bom fazer o bem quando você vê uma senhorinha precisando de ajuda para atravessar uma rua? Claro que é. É bom fazer o bem quando você vê um cãozinho abandonado e faminto num dia de chuva? Claro que é. Essas atitudes são boas e necessárias para qualquer pessoa — inclusive para um yogi que vive em sociedade —, mas você não depende delas para realizar sua prática de yoga, nem para chegar à libertação. 

Muitas pessoas, inclusive professores de yoga, têm dificuldades de compreender a amoralidade do yoga porque

1. Não compreendem como o yoga realmente funciona, não compreendem que a realização do estado de yoga — a libertação — depende de duas pessoas: você e seu guru — e mesmo assim só a primeira é que decide (svecchachara) se cumprirá aquilo que a segunda ensina. A dimensão social do yoga resume-se ao discípulo recebendo lições do guru.

2. Não compreendem que o yoga não é parte da distopia com a qual estão habituados: um mundo em que é possível fazer o bem e o mal a outras pessoas, um mundo em que tudo é determinado por essa relação com o outro, um mundo em que a sobrevivência depende do cumprimento de códigos morais de origem religiosa — até mesmo ateus pensam assim.

3. Não compreendem que o yoga é uma tradição em que a prática solitária da meditação é infinitamente mais importante do que qualquer dimensão social que ela possa sugerir.

E não compreendem estas três coisas porque estão irremediavelmente aprisionadas neste mundo e porque não meditam. E por estarem presas neste mundo e por não meditarem, a transcendência que o yoga oferece lhes é absolutamente estranha.

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