Ao praticar yoga, use os nomes corretos

Isto não é um cachimbo.

Você já reparou como você usa as palavras na comunicação diária?

Você vai ao mercado e quer comprar queijo. Então você diz para o atendente: «Gostaria de 200 gramas de queijo prato fatiado.» Então ele pega uma peça de queijo, coloca na máquina de fatiar e extrai uma quantidade de fatias que corresponde aos 200 gramas que você pediu.

Não é maravilhoso?

Observe como o atendente não pega uma peça de alcatra ou um rolo de barbante. Você disse «queijo prato fatiado», então ele pega uma peça de queijo prato e procede com o serviço. É uma interação sem margem para dúvidas. É uma comunicação cristalina, sem rebarbas, que começa com o fato de que a palavra «queijo prato» refere-se àquela peça amarela de textura firme e gordurosa e cheiro levemente azedo mas agradável.


Isto não é um queijo.

 É maravilhoso, sem dúvida.

No yoga as coisas são um pouco diferentes, a começar pelo fato de que yoga não é queijo prato. A coisa mais parecida com queijo que há no yoga é o ghee, que, como todo mundo deve saber, é a manteiga clarificada feita com leite de vaca ou de búfala. Mas estou tergiversando. Retornemos ao foco deste texto.

No yoga as coisas são um pouco diferentes porque o vocabulário que chegou até nós passou por filtros desconectados da tradição. Um destes filtros é a filosofia ocidental. Não quero dizer que o vocabulário da filosofia ocidental tenha invadido o vocabulário do yoga. É bem pior do que isso: o modo de pensar ocidental é que invadiu o yoga e o transformou desde dentro.

Quem conhece este modo de pensar sabe que a coisa mais comum do mundo hoje em dia é uma palavra ter quatro, às vezes cinco significados muito diferentes, às vezes opostos. Por exemplo, no Ocidente a palavra «amor» é usada para significar aquela aflição de querer relacionar-se sexualmente com uma pessoa ou a disposição de sacrificar-se para salvar a vida de alguém.

No Hinduísmo — e no yoga, portanto — é normal que ocorra o contrário: em vez de uma palavra ter quatro ou cinco significados diferentes, em geral cada significado tem a sua palavra, ainda que esses significados sejam semelhantes quando trazidos para o ideário ocidental. Por exemplo, o que nós, ocidentais, traduzimos como «amor» é representado no Hinduísmo por quatro palavras diferentes e cada uma delas é usada em função das nuances que a idéia de amor tem em um determinado contexto. Kama, prema, daya e karuna são palavras traduzidas igualmente como «amor» na maioria dos idiomas ocidentais, mas é claro que quatro palavras diferentes não podem ter significados rigorosamente iguais.

 Kama é o amor sensual, dos relacionamentos amorosos, conjugais, em geral dotados de uma dimensão sexual importante — daí o «Kama Sutra». Prema é o amor mais comum, da mãe pelo filho, de um casal unido há muitas décadas, de amizades de longa data. Daya é muito semelhante à compaixão cristã, como quando uma pessoa ajuda outra que está em sofrimento, é o «ama o próximo como a ti mesmo». Karuna é o amor dos iluminados, que cria a noção de igualdade amorosa e universal, o que alguns chamam de «amor por todos os seres viventes». O que um casalzinho de adolescentes sente um pelo outro definitivamente não é karuna. O que uma mãe sente pelo bebezinho que ela segura no colo obviamente não é kama. Mas nas duas situações fala-se genericamente de «amor».

Mal sabe Peter Parker...

A conversa aqui não é sobre amor, claro, mas sobre a importância de usar as palavras certas nos momentos certos. A saúde da inteligência depende dessa adequação. Ou melhor: inteligência é, entre outras coisas, ter clareza a respeito dos significados das palavras e saber usá-las da forma correta, nos lugares corretos.

Quando trazemos esta discussão para o campo estrito do yoga, vemos que há muito trabalho a ser feito. Vejamos, por exemplo, o que ocorre com a palavra «yogi».

Quando você vê uma foto de Ramana Maharshi e conhece sua biografia, você não tem dúvidas de que se trata de um yogi, dos maiores que existiram no séc. XX, senão o maior.

Ramana Maharshi, o maior santo hindu do séc. XX.

Mas quando você vê uma foto de um dos inúmeros instrutores de ginástica postural executando o dificílimo (do ponto de vista corporal) Kala Bhairavasana, você também não tem dúvidas de que se trata de um yogi.

Kala Bhairavasana, invenção moderna.

De um lado, Ramana Maharshi, o maior santo hindu do séc. XX. De outro lado, um ginasta anônimo executando uma postura corporal considerada difícil. E você chama os dois de «yogi». Como é possível que uma mesma palavra signifique duas coisas não apenas diferentes, mas opostas? Resposta: não é possível.

O que acontece com a palavra yogi é um reflexo da confusão que acontece com sua palavra-raiz, yoga. Hoje em dia esta palavra é usada para referir-se igualmente à meditação profunda, que leva à iluminação, e para referir-se à ginástica postural, com objetivos tão mundanos quanto emagrecer e melhorar a postura e a aparência. Oras, meditar para chegar à iluminação e fazer ginástica postural para emagrecer não são apenas atividades diferentes, são atividades opostas: ginástica implica um nível de agitação mental que o impede de meditar e é por isso que não existe nenhum caso de uma pessoa que tenha se iluminado porque fez ginástica.

O que, afinal, significa yoga?

Yoga vem da raiz «yuj», cuja tradução é «jungir», palavra que, por sua vez, representa o ato de unir, ligar, prender. Atar os cavalos a uma carroça e mantê-los alinhados para colocá-la em movimento é «jungir». O verbo alude ao esforço para estabelecer e manter o foco mental, cuja agitação é comparada à dos animais. Todas as técnicas do yoga têm como objetivo aliviar esse esforço de «jungir» a mente — observe, por exemplo, como quase todas as técnicas (asana, pranayama etc.) convergem para o primeiro estágio da meditação, que é a concentração (dharana).

Nada além de yoga.

Este é o sentido original e definitivo da palavra yoga: criar e manter foco mental — isto é, meditar. Ainda que isso comece no corpo com Sukshma Vyayama (ginástica sutil) e com asanas (aquietar o corpo e desfazer bloqueios corporais que impedem o livre fluxo de prana), o foco é sempre mental, o foco é sempre a meditação.

Avançando um pouco encontraremos também a palavra yoga usada para referir-se ao resultado da prática de yoga — isto é, a união com Deus que decorre da libertação do aparato corpo-mente (kshetra), o que, por sua vez, vem da meditação.

Seja um sinônimo de meditação, seja uma alusão ao estado que decorre da meditação, o termo yoga sempre esteve relacionado à transcendência. Foi a modernidade do séc. XX que se apossou do termo e o conectou a significados diametralmente opostos à transcendência — isto é, à própria imanência. Afinal, foi a modernidade que inaugurou a tendência doentia de usar uma palavra para significar duas coisas opostas ao mesmo tempo.

Uma forma de livrar-se desta tendência é ter a certeza dos sentidos que hoje são atribuídos à palavra yoga e ter o cuidado de usá-la da forma mais correta e exata possível. Assim como não existem dúvidas entre receptor e emissor quando este diz «200 g de queijo prato, por favor», não deveria haver dúvidas quando alguém diz «yoga». Mas para isso é necessário que o receptor e o emissor usem o mesmo vocabulário. Isto tem sido muito difícil num ambiente cultural em que as palavras podem significar X e não-X ao mesmo tempo. Mesmo assim, este trabalho de formiguinha, este resgate dos significados originais precisa continuar.

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